domingo, 10 de março de 2013

Natureza, cultura e arte



Natureza e  cultura e arte

                                                                                                      Elis Crokidakis Castro


Adorno e Horkheimer  em seu livro, Dialética do esclarecimento, afirmam que o mundo do animal é um mundo sem conceitos, afirmam isto para discorrer sobre um assunto interessante  que é a diferença entre o mundo  do animal e o mundo do homem, fato    que remonta aos primeiros estudos  sobre natureza e cultura.

Segundo Miguel Reale, “se volvermos os olhos para aquilo que  nos cerca perceberemos que o homem  não apenas  existe, mas coexiste , ou seja, vive  necessariamente em companhia de outros homens”  em virtude disso o homem estabelece relações de coordenação, subordinação, integração ou de outra natureza. Essas relações ocorrem em razão de pessoas  ou em função de coisas.
Dessa  forma podemos  dizer que  há 2 espécies  de realidade: uma de ordem natural  e outra humana, cultural ou histórica.

O mundo natural é aquele em que as coisas se encontram em estado bruto, seu nascimento não depende  da participação da inteligência   ou da vontade  humana. Assim o mundo natural é o que podemos chamar de o mundo cru, aquele que é dado e onde surgimos enquanto espécie, tal como todos os outros seres.
Todavia nós humanos tivemos um processo de evolução que proporcionou um desenvolvimento diverso das outras coisas do universo. Logo, ao lado do mundo cru posto pela natureza nós passamos  a exercer nossa  inteligência  e nossa vontade adaptando a natureza ao nosso fim.
Quando passamos então a executar essa adaptação criamos o que chamamos mundo cozido, ou construído, que é aquele que criamos e acrescentamos à natureza.
Todavia esta passagem não foi simples  demorou, e resulta  de um processo humano, em reconhecer que não há conflito entre o natural e o cultural, como diz Jaspers, a natureza está sempre na base de toda criação cultural.( Reale, p.26)
Assim nessa transformação e adaptação do natural em  sua função o homem cria a cultura.
Cultura,  que hoje possui inúmeras definições de acordo com a disciplina contemplada, tem seu termo originário do latim, já usado em  dois sentidos, como cultura agri (agricultura) e  como cultura animi . No que toca a agricultura temos a intervenção do homem  no conhecimento das leis que explicam  a germinação, cultivo do solo, do qual dependia a sobrevivência humana, era necessário  observar a natureza e a partir dali reconhecer suas  leis e depois aplica-las para produzir.
Junto a cultura do campo, os romanos viam também a “cultura do espírito , o aperfeiçoamento espiritual baseado no conhecimento da natureza humana.”(Reale,p. 25).  Na natureza humana repousa então a cultura.
Para  definir cultura recorremos ao dicionário Aurélio, que nos afirma ser  “o complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característico de uma sociedade , uma civilização”. Para  Roberto da Matta, em detrimento do uso comum de cultura  relacionado a escolaridade, temos  cultura no sentido antropológico social e sociológico “como um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam, e modificam o mundo e a si mesmas”(Você tem cultura?)
Assim diz  Roberto da Matta  a cultura parece ser um bom instrumento para compreender as diferenças entre os  homens e as sociedades. As sociedades desenvolveram  potencialidades diversas o que não quer dizer que sejam mais ou menos adiantadas, diz Roberto da Matta. Isto indica que cada “cultura encerra elementos plásticos capaz de receber as variações  e motivações dos seus membros, bem como desafios externos”.
Todavia não foi fácil  chegar a concepção moderna de cultura. Para o sociólogo Clifford Geertz existem várias concepções de cultura e uma delas  a científica, diz que  a cultura estava ligada a derrubada da visão da natureza humana dominante no Iluminismo.    
Neste tentava-se comprovar, segundo Geertz,  a existência de uma uniformidade cultural na espécie humana,para isso saíram buscando universais na cultura e uniformidades que  ao final determinariam os traços culturais essenciais à existência  humana.
Depois dessa fase de tentativa de unificação da cultura, como se fosse algo,na essência, igual em todos os povos da Terra, passou-se a desenvolver o conceito de cultura com base  não no natural , mas no convencional, local e variável. Com  essas  novas bases estabelecida foi possível que se chegasse  aos outros conceitos mais abrangentes e que desembocam, então, no que  hoje chamamos de cultura.
Geertz nos afirma que pelo processo de estudo  do homem no conjunto de seus costumes chegamos a conclusão de que este ser inacabado, só foi capaz de mudar seus próprios limites biológicos através da cultura, ou seja,  pela cultura foi possível ao homem se desenvolver, se adaptar  à causa  natureza e criar meios para a sua sobrevivência. Somente por causa da cultura  conseguiu o homem permanecer vivo na Terra. Logo a cultura foi orientadora da evolução do homem. Através das adversidades, das dificuldades e também das formas de resolve-las, e ao passar isso para outras gerações, o homem conseguiu ir aprimorando seus conhecimentos e mudando sua forma de viver para se  adaptar aos fenômenos naturais que podiam mata-los, ou  as vezes, transformar a própria natureza, nos fala o sociólogo.
Por esse motivo, sendo a cultura orientadora da evolução humana, o homem se tornou dependente dela, pois segundo Geertz, “ nossas ideias, nossos valores, nossos atos, e  até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais”.
Daí também a cultura poder se vista como um conjunto de mecanismos controladores e devido a isso pode ser usada como instrumento  de ideologia. Ao impor determinadas formas culturais pode-se levar ao pensamento massificado e o homem nesse caso não produzirá mais cultura, torna-se mecânico  e tudo que é mecânico  não tem vida intelectual sensível,  pensante, de forma a atingir  a sua consciência de liberdade e  consequentemente  a sua humanização.  Para muitos, ao atingir essa humanização é possível ao homem ter uma visão da sua condição social e por isso modificar sua vida, coisa  que nem sempre é interessante para os que controlam os poderes instituídos e impõem o sistema.
 Assim, voltando ao que difere o homem do animal, este permanece mergulhado na natureza e o homem é capaz de transformar a natureza tornando possível a cultura. Cultura então pode ser vista como um  “processo de autoliberação progressiva do homem, o que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de projeto, que se faz à medida que transcende, que ultrapassa a própria experiência” . Essa condição  de fragilidade, representada pela mutação, é justamente o que é a “característica humana mais perfeita e nobre:   a capacidade do homem de produzir sua própria história”.(IF,p.6)
Justamente pautado nessa capacidade de produzir sua história o homem se distingue do animal pois somente o homem  fala, faz uso  da palavra e a partir daí cria a linguagem. Não que o animais não tenham linguagem, eles tem,  mas somente a linguagem humana conhece o símbolo. A do animal conhece apenas o índice(forma fixa que se refere a uma coisa.ex: palavras de adestramento de cães).
Logo a linguagem humana  por usar o símbolo, forma abstrata, “distancia  o homem da experiência  vivida , tornando-o capaz de reorganiza-la numa outra totalidade, dando novo sentido”( IF, p.5)     
“A linguagem por meio da representação simbólica e abstrata, permite o distanciamento do homem em relação ao mundo, também é o que  possibilitará seu retorno ao mundo para transforma-lo”( IF, p5)
Dessa forma a linguagem é um sistema de representações aceitas por um grupo social, que possibilita  a comunicação entre  os integrantes de um mesmo grupo. Todavia, por ser o laço entre objeto e representação  algo arbitrário, esse é então uma construção da  razão, produto dela.  Logo a linguagem, que é formada por símbolos criados arbitrariamente  pela razão,  é um dos principais elementos da formação do mundo cultural, da cultura. Pela linguagem, como já dissemos, podemos nos afastar dos objetos, todavia os tornamos presentes pelo nome que simbolicamente os representa.
A linguagem se estrutura em um sistema de  signos(algo que está em lugar de outro, sob outro aspecto)  e por isso, por o signo estar no lugar do objeto, a representação do objeto pode assumir aspectos variados, dependendo da relação  que o signo mantém com o objeto representado.( IF, p.29)
  Daí termos vários tipos de linguagem criadas pelo homem.
A linguagem verbal,  a linguagem matemática,
 a de computador,  as gestuais, da moda e a linguagem artística( arquitetônica, musical, pictórica, escultórica, teatral, cinematográfica etc).
Essas todas linguagem se estruturam de forma diversa, especificamente a linguagem artística  se desenvolve respeitando a especificidade de cada campo artístico. Por isso cada campo de exploração vai desenvolver técnicas e estilos novos e diferentes.
Podemos dizer que  foi G.E.Lessing  em seu livro Laocoonte quem  na modernidade analisa  mais profundamente as fronteiras entre as artes, para o autor essas fronteiras na modernidade se alargaram e ele no  livro vai à arte clássica  buscar os elementos que darão sustentação a seus pensamentos.
Hoje  podemos dizer que  a largura  está  ainda maior e sem limites, as fronteiras entre as mais variadas linguagens da arte  se interpenetram, não sendo possível, hoje, se definir bem os vários tipos.    
Mas o que é a arte? Assim como as outras linguagens , dizem Aranha e Martins, a arte vai aparecer no mundo humano como forma de organização, como modo de  transformar a experiência  vivida  em objeto de conhecimento, desta vez através do sentimento. O entendimento do mundo não se dá apenas por meio de conceitos logicamente organizados, que pelo fato de serem abstrações genéricas estão longe do lado sensorial, do momento vivido. O entendimento pode se dar também através da intuição, do conhecimento imediato da formação concreta e individual, que não fala à razão, mas   ao sentimento e à imaginação.( IF, p.345)
A arte dizem as autoras, é um caso privilegiado  de entendimento do intuitivo do mundo, tanto para o artista que cria obras concretas e singulares quanto para o apreciador que se entrega a elas para penetrar no sentido.(IF,p345).
Dessa forma, a linguagem simbólica  da arte não é uma entidade abstrata, nem fruto apenas da razão, são obras de arte, objetos sensíveis, concretos, individuais, que representam a experiência  vital intuída pelo artista.(IF,p.346)
O artista atribui significados  ao mundo por meio da sua obra e o espectador lê esses  significados nela depositados, interpreta,  em termos de intuição, de  forma sensível  e não de conceitos. Logo, na obra de arte o importante não é o tema em si, mas o tratamento que se dá ao tema transformando-o em símbolos e  valores de determinada época. Daí a  relação entre arte e cultura visto que a arte reflete os símbolos e valores de determinada cultura. Espaço, Luz , tempo, sombra, cor, volume, enquanto dados sensíveis, não são iguais na vida cotidiana e na arte.(IF,p.346). No  cotidiano usamos os dados para a partir da  razão construirmos nosso conceito de mundo físico, na arte usamos os dados para alargar nossa experiência sensível de mundo, nossos horizontes. “ o artista não copia o que é; antes cria o que poderia ser e, com isso , abre as portas da imaginação”.
Para E.Fischer em A  necessidade da arte, “ em todo autêntico trabalho  de arte, a  divisão da realidade humana em individual e coletiva, em singular e universal, é interrompida; porém mantida como fator a ser incorporado em  uma unidade recriada. (...) Só arte pode levar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total. Ela capacita o homem para compreender  a realidade e o ajuda não só a suportá-la  como a transformá-la, aumentando-lhe  a determinação de torna-la mais humana  e mais  hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social”.
Ainda segundo  Fischer, a razão de ser da arte nunca permanece a mesma. Sua função difere nas sociedades e diferem da função original da arte. No entanto, independente de sua função a arte expressa uma verdade permanente.
Pode a arte  ser útil para alcançar um fim não artístico, e isso varia  no curso da história , seria uma função pragmática ou utilitária quer alcançar outra finalidade não da arte em si mesma , pode também ter uma função naturalista, de representação fiel da realidade, ou ainda  formalista, preocupada com a forma de apresentação da obra, princípios que regem sua organização interna, aqui valorizando a experiência estética.

Há ainda que se falar do significado da arte . Se pensamos a palavra texto, como uma unidade de coerência e de coesão que se organiza para ter um sentido, poderemos estende-la  a  qualquer tipo de arte, já que esta é  uma linguagem, assim “a arte se constitui em um texto muito especial, pois a atribuição de significados está presa a sua forma sensível de apresentação e é inseparável dela”( IF,p.354)
Partindo desse entendimento, de ser a arte um texto especial, podemos dizer que a informação estética, ao contrário da informação semântica não é necessariamente lógica. A arte existe mesmo dentro de um sistema de comunicação restrito, até interpessoal, ou mesmo quando  não há um receptor apto a recebe-la. E ainda mais, a arte tem a característica de ser inesgotável, não se esgota numa única leitura. Por isso não envelhece, também é uma obra aberta, pois ela própria instaura um universo  amplo de significações que serão captadas de acordo com a capacidade do receptor.
 Nos estudos da linguagem Jacobson dentre as 6 funções da linguagem enumera a função poética, está podemos dizer ultrapassa a  linguagem poética e perpassa  à dimensão estética podendo ser aplicada a outras linguagens artísticas. Esta  função,caracteriza-se pelo centramento na própria  mensagem, chamando atenção para forma de  estruturação e de composição.

Assim falarmos em natureza, cultura e arte é em suma falarmos do homem em seu percurso de existência na Terra. Não podemos hoje pensar como nos século anteriores, pois temos informações suficientes para entender que não há mais que se falar em uma só cultura predominante, mais em culturas que coexistem no planeta.
Com o processo de globalização, ainda mais o processo  humano se transforma, hoje segundo Canclini falamos em culturas hibridas entendida a hibridação por processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas  discretas, que existiam de forma separada , se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Ou como diria Oswald  de Andrade, no que se refere ao modernismo brasileiro, deu-se a  antropofagia que  foi a assimilação de vários elementos culturais diversos e a formação de um outro que englobe os seus formadores.
Ou seja, os estudos da cultura, assim como da arte e da natureza não terminam, justamente porque somos serem inacabados,  em processo de interminável de construção da existência.