sábado, 2 de abril de 2011

DORIAN GRAY LEITOR DE HUYSMANS E WILDE LEITOR DE DES ESSEINTES

No ano de 2000, comemorou-se o centenário de morte de Oscar Wilde, escritor e dramaturgo irlandês que morreu aos 46 anos vitimado por meningite em um hotel em Paris.

Muitas são as biografias de Wilde e todas enfatizam além do grande escritor o homem ímpar, que em suas posições perante a sociedade fugia do chamado senso comum, da mediocridade, dos valores corrompidos pela sociedade burguesa.

Dandy, sarcástico, homossexual ou bissexual, ele sempre tinha uma frase de relevo, uma crítica sagaz à hipocrisia vigente na sociedade e por esse seu posicionamento foi alvo da mais cruel pena aplicada a um escritor. Foi julgado e preso por motivos estranhos, ou poderíamos dizer, que Wilde foi condenado por sua obra, pela criação e pelas atitudes de sua personagem.

Como dramaturgo que era Wilde nos deixou peças como Salomé que até hoje é representada nos teatros de todo o mundo, Um marido ideal, O fantasma de Canterville entre outras e como romancista foi autor de um único romance que ainda é sucesso de público O retrato de Dorian Gray.

Nesse trabalho o que especialmente nos tocará será o único romance escrito pelo autor.

Trata-se de livro que conta uma história aparentemente banal, mais um possível pacto fáustico em defesa da manutenção da beleza, da juventude, do vigor da mocidade.

A personagem principal é Dorian Gray, adolescente, dandy, que vive a vida a gozar dos prazeres que sua juventude e fortuna lhe proporcionam. Esse jovem ao ter seu retrato pintado por um artista, se apaixona por sua imagem e faz com ela uma espécie de pacto, onde somente o quadro (retrato) sentiria as implicações do tempo e da vida e ele homem, Dorian, permaneceria jovem para sempre.
Talvez pudéssemos nesse texto também fazer uma leitura através da mitologia, pois sem dúvida, o mito de narciso está presente nessa narrativa. Isso ocorre no momento em que Dorian se apaixona por sua imagem, logo seu destino estará traçado, como no mito, e a morte será inevitável.

A personalidade de Dorian, sem hesitação nos remete ao mito, pois, como a figura mitológica, Dorian é um indivíduo frio diante do outro, incapaz de entender/ atender à vontade alheia e não quer o amor de ninguém, bastando-se a si mesmo. Dorian é fechado em si mesmo e incapaz de amar o outro, como o Narciso, e ainda se entrega à autodestruição, o que é facilmente comprovado na narrativa de wilde.

O pacto fáustico é, no entanto, algo simbólico e que lemos nas entrelinhas do romance. Conforme as cenas acontecem, o leitor vai se dando conta da magnitude do ato firmado, da sordidez da personagem, dos seus desejos, vícios e todo o contexto que remete-nos ao final do século XIX.

Entretanto, o que nos chama mais atenção nesse romance é menos a história do que o embricamento que existe entre o autor e a personagem principal de seu romance entre a vida e a arte e as infinitas divagações sobre a essência do viver. Principalmente nos chama atenção a veia decadente que percorre a narrativa e que também se mistura à vida de seu autor. Não é difícil perceber que nesse livro existe uma fusão entre o autor e seus personagens. Por vezes podemos dizer que o autor aparece como Dorian, ou como Lord Henry, dependendo do momento e da fala.

É característica também desse livro a utilização de inumeráveis recursos de discurso mostrando a vertente decadente da escritura que usa, sem pudores, a intertextualidade, principalmente com o livro de Huysmans.

Assim, tal livro, O retrato de Dorian Gray, como o Às avessas é um verdadeiro modus agendi para o final do século e revela toda a inquietude do homem moderno naquele momento.

Sem dúvida, a presença de Wilde se fez muito mais marcante que a de Huysmans, principalmente no Brasil, basta vermos a data da primeira tradução de Wilde (feita por João do Rio, início do século XX) e da 1ª tradução de Huysmans( feita por José Paulo Paes, em 1987).

Contudo, mesmo com as distantes datas de tradução, não somos autorizados a dizer que os leitores brasileiros não tiveram acesso ao livro de Huysmans e outros decadentes. Acreditamos que a força do movimento foi maior do que os críticos supunham e que ele influenciou muitos dos nossos escritores do início do século XX (Elisio de Carvalho, Gonzaga Duque, e poetas que foram tratados como simbolistas). Tudo isso corrobora na opinião de muitos estudiosos quando dizem que o primeiro contato dos escritores brasileiros com a modernidade foi através dos textos decadentes.

Mas, o que é o Decadentismo? Perguntariam muitos leitores de Oscar Wilde que ao passar por seu texto não se deram conta da sua importância para o entendimento do final do século XIX.

O movimento decadente surge na França do final do século XIX, em meio a uma grande crise de “representação da realidade” (expressão que já virou lugar comum nas análises literárias que tomam como enfoque aquele momento), ou melhor, surge em meio a uma grande anarquia das idéias representativas da realidade finissecular.

Ao contrário do que pregavam realistas e naturalistas o decadentismo surge como uma reação a doxa desses movimentos, surge como marco de ruptura da arte com a realidade.

Para o Decadentismo o que importava era à busca de novas formas (artificiais é claro), o elogio à maquiagem, a máscara, a nova sensibilidade. Importava também a valorização dos sentidos, do prazer dado pelas sensações. A essa valorização somava-se uma visão pessimista da vida (pautada no pensamento de Shopenhauer e Nietzsche), e o interesse pelas coisas secretas, pelos mistérios, pelo inconsciente e pelos rituais. Tudo que pudesse dar conta de uma realidade que não mais podia ser explicada pela razão.

A personificação da alma decadente, como já disse, aparece na personagem Dorian Gray, porém, para entendermos bem a vida decadente de Dorian, nos remeteremos a uma outra personagem, des Esseintes, o ator principal do Às avessas.

É inumerável a quantidade de vezes que Wilde faz referência a bíblia do decadentismo, livro que conta à história de uma única personagem que se refugia nos arredores de Paris para viver numa casa onde todas as excentricidades são possíveis, um verdadeiro museu de formas. Nessa casa a personagem vive de suas lembranças e inventando as mais mirabolantes formas de aguçar seus sentidos, invertendo a ordem natural das coisas, até da própria função de sentir. Além de viver assolado pela nevrose, doença que aparece na maioria das personagens finisseculares.

Nesse contexto, o que fatalmente chama mais atenção, além das excentricidades, é a questão estética. Huysmans era crítico de arte e em seu texto observamos a clara intenção de valorização da arte como última salvação possível.

Seu romance então serve como palco para diversos pintores e escritores que ainda não possuíam um espaço na sociedade.

Simultaneamente a essas intenções, observamos que esse romance marca a transição para a narrativa moderna que transparece nas entrelinhas e nos simulacros do discurso decadente, cujo precursor foi Baudelaire entre outros.

Assim, munidos da bagagem de Huysmans, partimos para o Retrato de Dorian Gray onde encontramos os mesmos preceitos decadentes.

É fato que a escrita decadente huysmansiana influenciou muitos autores, porém a forma como Wilde traduz essa influência é que nos surpreende. Sabemos que o texto decadente é um texto marcado por intertextualidades, escritores fazem referências a outros escritos decadentes durante todo o tempo, entretanto, em cada texto, ou lugar, os escritores assumem um discurso que tem também um estilo próprio, embora muitas vezes falando sobre o mesmo tema.

Pontualmente, Dorian Gray tem o primeiro contato com des Esseintes no capítulo X quando Lord Henry envia-lhe o romance de Huysmans.

Em nenhum momento o nome do livro é dito e ele é tratado como “o livro amarelo” enviado pelo amigo de Dorian.

A partir desse capítulo, ou melhor, do final do capítulo X a história de Dorian Gray começa a ficar mais parecida com a de des Esseintes .

A referência ao Às avessas é feita primeiro em forma de crítica. A narrativa wildeana inicia desvendando de maneira genérica o conteúdo do enredo e de maneira singular as impressões mais fortes que o livro lhe causava.

Em síntese, nos comentários gerais sobre o livro o narrador revela todo o seu fascínio sobre a obra e lhe renderá tributo pelo resto da narrativa.

Dorian, ou Wilde, dizem, desse livro

“era como se os pecados do mundo desfilassem (...), em magníficas roupagens, numa pantomima acompanhada de sons suaves de flauta(...). O estilo do livro era esse curioso estilo cinzelado, cintilante e obscuro, eivado de gíria e de expressões arcaicas, de expressões técnicas e de paráfrases complicadas que distingue a obra de certos simbolistas franceses.” (Wilde,2001,p.138-9).

É curioso perceber que também na análise do narrador aparece a forma decadente do discurso. Os termos utilizados são os mesmos, as metáforas também e é interessante ver a análise mostrando o efeito que o livro provoca no leitor, principalmente em Dorian.

Era em suma um livro venenoso, de páginas impregnadas de um cheiro forte de incenso que perturbava o cérebro. A simples cadência das frases, a monotonia da sua música ia mergulhando a mente do leitor à medida que ele passava de um a outro capítulo, em uma espécie de devaneio de sonho malsão” (Wilde, 2001, p.139).

Porém a influência huysmansiana não se restringia ao aspecto geral. No capítulo XI ocorre uma mudança no tom da narrativa e parece que Wilde suspende a trama para somente falar das coisas que Dorian fazia, coisas estas que são as mesmas de des Esseintes . Parece mesmo uma paráfrase do texto de Huysmans. E é quando a personagem Dorian é finalmente revelada em totalidade para o mundo, revelação esta que vai do aspecto físico a sua forma de viver.

Aliás, é no início desse mesmo capítulo que Dorian manda comprar nove exemplares da primeira edição do Às avessas e manda fazer encadernações diferentes em cada exemplar que ele leria de acordo com seus diferentes estados de humor, a referência é direta ao livro de Huysmans, pois também des Essenteis tinha esse tipo de atitude com os livros de que ele mais gostava da sua biblioteca. Ele transformava em objeto de arte os seus livros com as encadernações singulares, ou seja, não só o conteúdo importava, mas também a forma do objeto e a sua utilização como peça na decoração.

Ainda nesse capítulo a análise feita pelo narrador é de que tal livro “acabou por parecer (a Dorian) a prefiguração da sua própria personalidade” (Wilde, 2001, p.140). A vida de des Esseintes é, assim, retomada por Dorian quando as cenas daquela são reapresentadas como se fossem da vida deste(Dorian).

É lógico que isso poderia ser esperado na medida em que o narrador afirma: “o livro era para ele Dorian, por assim dizer, a história da sua vida, escrita antes que ele a houvesse vivido” (Wilde, 2001, p.140).

Dorian seria então a reapresentação de des Esseintes em todos os sentidos, na forma de conviver com as pessoas, em seus hábitos, no que ele lia, no que vestia, nos valores que cultuava e mesmo, podemos dizer, na trajetória de vida, pois Dorian vivia como des Esseintes, antes deste se exilar em Fontenay aux Roses.

Depois de algumas análises psicológicas a narrativa então passa a retomar as cenas próprias da vida de uma personagem em outra, numa intertextualidade direta, podemos dizer.

A primeira cena remete aos jantares de gala que tal como des Esseintes (página 43 do Às avessas), Dorian também oferecia aos jovens.

Os seus jantares íntimos(...) gozavam de merecido renome pela seleção dos convivas, pelo gosto requintado que se revelava no arranjo das mesas disposição das flores, no luxo das toalhas, na riqueza da antiga baixela de ouro e prata” (Wilde, 2001, p.142).

Nesses jantares ambos as personagens recebiam os homens de letras, pessoas de cultura e elegância. A elegância, aliás, era uma das pedras fundamentais na personalidade de des Esseintes e por reflexo na de Dorian.

Ambos eram dandys à moda de Baudelaire e cultuavam esse estilo de ser sintetizado por Wilde (2001 p.142).

“(...) o dandismo que é a seu modo uma tentativa de afirmar o modernismo absoluto da beleza, exerciam sobre Dorian uma fascinação bem compreensível. O seu modo de vestir, as maneiras peculiares que afetava de quando em quando, influenciavam acentuadamente a mocidade dos bailes de Mayfair e dos clubes de Pall Mall, que o seguia em tudo e tentava imitar o encanto inimitável dos seus requintes de elegância, aos quais ele não prestava senão uma atenção muito relativa”.

Outra passagem que surge com influência huysmansiana na narrativa de Wilde mostra as preferências literárias da personagem principal. A obra de Petrônio, Satyricon, é também por Dorian Gray revisitada e valorizada. Nesse ponto também aparece a valorização dos sentidos.

Nessa mesma linha de raciocínio desenvolvem-se então os dois romances, Assim sendo, a “espiritualização dos sentidos” é que interessava, por isso as personagens começaram a criar inúmeras atividades que mexessem com esses sentidos.

No contexto e antes de mostrar propriamente as experiências com a música, com os cheiros, com o paladar, com a visão e o tato, a narrativa mais uma vez parafraseia Huysmans, retoma algumas suas divagações que mais parecem delírios e que falam sobre a condição humana e as filosofias que se desenvolviam na época.

No final dessa parte aparece também a referência à religião, outro ponto de suma importância no texto da vida de des Esseintes. A religião vista pelo lado do ritual e das formas teatrais que são realizadas em louvor a Deus e aos Santos numa concepção diferente daquela que se desenvolvia na sociedade de um modo geral.

Assim, muitas coisas da vida de Dorian somente são reveladas por associação com a vida de des Esseintes, outras coisas são sugeridas pelas cenas em que surgem outras personagens, as cenas de convívio social, que mostram o dia a dia.

O tempo na narrativa também é marcado de forma estranha pela imagem do quadro, retrato, de Dorian, só ele sofre com o tempo, envelhece.

Podemos notar também que nesse capítulo XI não encontramos a presença de diálogos, é como o Às avessas, um sem fim de descrições, impressões, conceitos e características. Tudo que aqui nesse capítulo se desenvolve é intertextual com o livro de Huysmans, todas as experiências realizadas pelas personagens daquele são também aqui realizadas embora nem sempre se cheguem as mesmas conclusões. Sabemos que tais experimentos, realizados por ambas as personagens, são marcas da visão cientificista vigente no final do XIX, que era também a visão que imperava na arte. Ou seja, tratava-se o viver como uma espécie de laboratório ensaístico. A vida era tomada como obra de arte, como bem disse Wilde, o que de fato era uma posição que já vinha desde a época do romantismo. Dessa forma toda uma concepção de experimentos deveria ser ativada, as pessoas iniciadas tinham que se permitir viver sendo capaz de sair da mesmice, do senso comum, e por isso não hesitavam em se expor em experimentar.

No entanto apesar de superficialmente seguir o estilo vigente, ambas as narrativas rompem de alguma maneira com o pré-estabelecido.

É fato que o Retrato de Dorian Gray foi primeiro publicado em textos soltos e só em 1891, esses textos foram compilados e enxertados a outros dando origem ao romance completo. Por isso, notamos que esse capítulo XI é como se fosse um grande enxerto, pois ele foge a estrutura convencional da narrativa, que em sua base é muito mais voltada para o texto dramático que para descrição.

Na seqüência, ainda do mesmo capítulo XI, depois de falar que: “os sentidos tanto quanto a alma têm seus mistérios” (Wilde, 2001, p.146) a narrativa inicia os experimentos com os cinco sentidos do homem.

Começando pelos perfumes, Dorian se ocupa da fabricação de essências e tenta , como des Esseintes, fazer a correspondência entre o estado de espírito em um dado momento e as sensações odoríferas, os odores que advém desse mesmo momento. Assim, a cada fato acontecido e a cada estado de alma corresponderia uma essência diferente e diz: “o aroma do incenso nos predispõe ao misticismo, o do âmbar nos estimula às paixões, o das violetas nos traz à memória de romances mortos(...)” (Wilde, 2001,146).

Depois das associações feitas com as essências Dorian envolve-se com a música. Num salão especial ele realizava os mais variados tipos de concertos. Músicas de todas as partes do mundo produzidas pelas mais variadas etnias e os mais variados instrumentos que também eram colecionados por Dorian.

De fato, fugia-se ao convencional da música, que era Beethovem, Chopin e outros que eram indiferentes para Dorian.

Até mesmo instrumentos indígenas da Amazônia faziam parte da coleção exótica da personagem, que quando se sentia cansado de tantas excentricidades voltava ao teatro para escutar o também preferido compositor de des Esseintes, Wagner.

No percurso, surgem agora as pedras preciosas também outro delírio retirado da narrativa de Huysmans, mas com fatos singulares.

Além de colecionar as pedras, Dorian colecionava as lendas a respeito delas. Tudo começou quando a personagem foi a um baile com uma fantasia que continha 560 pérolas. Sua coleção era de fazer inveja aos do ramo de gemas e continha as pedras mais exóticas. As quais Dorian fazia questão de dizer a função ou supertição que a envolvia.

Depois das pedras a personagem se volta para as tapeçarias e bordados. Sua coleção era riquíssima com bordados e peças de todo o mundo, as mais exóticas possíveis. Esse parágrafo também remete a narrativa huysmansiana, porém neste a valorização desses elementos apresenta-se mais dispersa ao longo do romance principalmente aparece quando des Esseintes esta decorando sua nova casa.

Seguindo o interesse pelos tecidos e bordados Dorian tem “uma paixão especial” pelas roupas dos eclesiásticos, não só as roupas, mas tudo que simbolize qualquer tipo de ritual religioso. Nesse mesmo parágrafo o narrador diz que esses rituais faziam a personagem esquecer a tragédia de sua vida.

Em muitos aspectos nessa parte as narrativas se assemelham, principalmente ao fato de Dorian durante alguns anos estar afastado da Inglaterra em uma vila que compartilhava com Lord Henry. As semelhanças com o vilarejo de Fontenay aux Roses, casa de des Esseintes são então muitas.

Na esteira das semelhanças temos uma série de divagações sobre a sociedade e seus aspectos morais, tudo advindo de reflexões feitas sobre a vida de Dorian, ou a vida de Wilde, reflexões estas que desembocam em algumas concepções sobre a arte, que também aparecem em A rebours .

Nessa hora entra em cena a galeria de quadros de Dorian. Em longo parágrafo do capítulo XI a personagem visita os quadros com retratos dos membros de sua família, a cada quadro correspondia uma história de vida que ele rememorava buscando uma relação com sua própria vida.

É interessante que essa galeria seja de retratos, e não de todos os tipos de representação como é a de des Esseintes, que apresenta ao mundo diversos novos artistas, reais, dessa forma existe a remissão ao Às avessas diferindo apenas o conteúdo das obras.

Depois dos quadros, Wilde desenvolve uma teoria que fala dos “ascendentes literários” das pessoas. E que esses ascendentes exerceriam muita influência sobre as pessoas, fazendo aí uma grande alusão a História que estava lendo ( Às avessas). E diz o narrador:

“O livro era o registro de sua própria vida, não como ele vivia na ação e nas circunstâncias, mas como a sua imaginação havia criado, como, para ele tinha sido ela no seu cérebro e nas suas paixões”. (Wilde, 2001, p.153).

Nesse ponto Wilde/Dorian assume realmente que na vida das personagens é que lia sua própria vida, sensação tal como a de des Esseintes. E mostrando a semelhança entre Dorian e des Esseintes a narrativa elenca uma galeria de personagens literários com os quais estas personagens principais se identificavam. Cita os capítulos 7, 8 e 9 do Às avessas com todas as figuras mais marcantes da sua literatura predileta.

O capítulo finaliza falando das formas de envenenamento da renascença e compara o livro A rebour a um veneno que o envenenou e diz “em certos momentos, o pecado não era aos seus olhos senão um simples meio de realizar o seu conceito de belo” (Wilde, 2001, p.154).

Podemos dizer que depois do capítulo XI, as referências ao livro de Huysmans são indiretas, ou seja, elas se disfarçam nas ações e diálogos de Dorian, porém não remetem diretamente ao livro, mais a uma concepção maior de vida que, sem dúvida, se assemelha com a vida de des Esseintes.

Coisas como o celibato, que é discutido no capítulo XV, a cidade, “a cura da alma por meio dos sentido e a cura dos sentidos por meio da alma” (Wilde, 2001, p.189), a discussão sobre a beleza e a arte (cap. VII), as divagações sobre a velhice e a juventude são elementos que aparecem em ambos os romances e que representam de maneira geral as concepções decadentes de vida e não só representam uma citação direta ao A rebours.

No capítulo XIX, a última remissão ao livro ocorre quando Dorian diz a Harry que “ele o envenenou com esse livro” (Wilde, 2001, p.220).

Essa afirmativa traz em si todo um conteúdo simbólico. Veneno é o que mata, daí temos a sugestão de uma relação íntima entre desejo e morte, uma relação que ao mesmo tempo pode dar motivo para a vida e encaminhar para a morte.

Talvez esse seja o caso da escrita decadente, pois se sabendo sentenciada a morte antecipadamente, ela não teme experimentar e também suas personagens não temem ousar, provar, chocar o leitor, vivenciando tudo que possa lhe causar alguma espécie de prazer, mesmo que mórbido, sádico ou perverso.

Existe nessa narrativa apenas um compromisso: com a arte, com a beleza, a artificialidade. E, o desejo de ser eternamente belo, de não envelhecer jamais é um dos sentidos da obra e alvo do pacto da personagem. Logo, tanto a obra, quanto o pacto continuam atuais, mesmo após um século da sua publicação. Vide a discussão sobre eterna juventude, ou seja, não podemos dizer que o pacto hoje é com o diabo mas, com o cirurgião. E a busca do belo como alternativa para a morte continua presente em nossos dias assim como a artificialidade que aparece cada vez mais nos corpos esculpidos com silicone.

Logo muitas são as semelhanças que ocorrem entre os finais de século, onde existe uma espécie de anarquia de idéias, como já disseram, e a constante incapacidade do homem de digerir rapidamente as mudanças porque passam o seu planeta e a sua sociedade.

Diante disso, percebemos que jamais estaremos imunes ou preparados para as descobertas, pois elas sempre trazem algo de estranho para os conceitos estabelecidos.

Entendemos assim que certos problemas que havia no final do XIX ainda hoje persistem e também persistem os questionamentos filosóficos do homem, estes que, de fato, jamais serão respondidos.

E acho que aí está o veneno ao qual Dorian se refere no final do livro, veneno este que só atinge os iniciados nos mistérios da arte e que por isso só tem um possível antídoto, a própria a arte.

E, como diz Wilde, “Passamos a vida buscando seu segredo. Pois bem, o segredo da vida é a arte”.


CONCLUSÃO:

"Toda arte é ao mesmo tempo aparência e símbolo.

Os que penetram abaixo dessa aparência o fazem por sua conta e risco."

( Wilde, 2001, p.18)

Assim, transcrevendo Oscar Wilde, no prefácio de seu único romance, chegamos ao fim desse pequeno estudo das influências de J-K Huysmans (especificamente o livro Às avessas) na obra intitulada O retrato de Dorian Gray.

Não tivemos a intenção de ser exaustivos diante desse tema, visto que, muitos outros aspectos dessas obras supra citadas podem ser ainda alvo de inúmeras pesquisas, tamanha é a riqueza de elementos que elas possuem e a sua atualidade mesmo passado mais de um século de sua criação. Entretanto, esperamos ter desvendado um pouco mais da obra desses dois grandes autores decadentes.


BIBLIOGRAFIA

HUYSMANS, J-K. Às avessas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia da Letras, 1987.

PEREIRA, J.C.S. Decadentismo e simbolismos na poesia portuguesa. Coimbra: Coimbra editora, 1978.

PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas: Editora Unicamp, 1996.

WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

Texto Apresentado em seminário na UFRJ em 2002.

Nas lacunas da narrativa moderna de José Geraldo Vieira, o encontro com o discurso decadentista

Resumo:

Neste texto, mostraremos como José Geraldo Vieira, em a “Túnica e os Dados”, recorre a mais um elemento da estética decadentista, a utilização de obras de representação pictórica na construção de sua escrita, seja trazendo novos artistas e suas criações ou apenas conduzindo o leitor a uma imagem já preconcebida pelo narrador, e não pelo leitor em seu imaginário. Como no Decadentismo, a obra de arte é arma em punho na fuga da vulgaridade do cotidiano, e sua utilização se dá através da escrita moderna de JGV, que usa elementos como a intertextualidade, a polifonia e as mais variadas maneiras de dizer e ler o texto literário.

O texto:

Que pintura e literatura são duas formas diversas de representação, recriação da realidade, já sabemos, mas não é sempre que podemos estabelecer ou encontrar entre elas uma relação de intimidade. Podemos dizer que nem sempre a literatura, ao criar suas imagens, se relaciona com a pintura.

Isso porque tanto o pintor quanto o escritor possuem traços singulares, especiais de ver o mundo. Digamos que formas independentes. O pintor não precisa que o escritor traduza em palavras sua arte, assim como o escritor não precisa que o pintor, através de sua leitura, crie imagens reais para o que ele escreve.

Entretanto, isso muitas vezes ocorre. Quando um escritor, em seu livro, se refere a uma determinada imagem já existente, não só pelo seu título, mas busca traduzi-la com palavras, defini-la através de uma metalinguagem, estamos diante da representação de um objeto estético real, que ao mesmo tempo, possui características diversas. Isto é, quando um escritor, com suas palavras, passa a descrever, retratar um quadro, ele não apenas o retrata, copia, como uma fotografia, ele, através de seu olhar, vai além da forma, ele recria a imagem com suas palavras e emoção, ele dá um novo viço, interpreta. Ao usar palavras fortes ou fracas, ele pode convencer o leitor, dar força à imagem ou simplesmente torná-la indiferente. Ele pode também, pelo seu estilo, tornar a imagem conhecida através de metáforas, de comparações, e pode, o que é mais incrível, fazer com que o leitor imagine algo completamente diverso do que o que ele viu. Não sabemos se a palavra, ao final, consegue dar conta da imagem, mas certamente ela a recria.

Por outro lado, o pintor, ao se influenciar por um texto, possui uma independência ainda maior. Os olhos do pintor distinguem-se dos do escritor, aquele enxerga cores, formas, proporções e ângulos diversos, detalhes ínfimos que a palavra não consegue abarcar. Certamente que uma obra escrita, ao se tornar uma obra pictórica, jamais será a mesma. A subjetividade do pintor interferirá diretamente nesse resultado, e o que surgirá poderá ser completamente diverso do que o autor/escritor imaginou.

Quando um escritor pede a um desenhista que colabore e desenhe sua obra, estabelece-se aí uma parceria e temos duas linguagens numa só obra, que podem ou não apresentar o mesmo significado quando lidas juntas ou separadas.

Partindo desses pontos, reparamos como esse exercício com duas linguagens é presente no Decadentismo e o quanto é interessante compararmos as descrições dos textos com as obras reais. E por que isso acontece?

Alguns escritores decadentes, desde Baudelaire, Huysmans, Oscar Wilde, João do Rio, até Elysio de Carvalho, possuem em sua bibliografia textos de análise da arte pictórica. Ou seja, esses autores também transitavam no campo das artes plásticas como críticos. Baudelaire fala sobre o salão de 1859, Huysmans, em seus livros, fez questão de dar conhecimento ao público sobre diversos pintores ainda sem prestígio e cujas obras ficaram eternizadas pela descrição por ele feita. Como exemplo, pensamos em dois quadros de Gustavo Moreau recriados através das palavras por Huysmans. Quadros da coleção do Conde Des Esseintes, como a “Aparição” e “Salomé”, que eram desconhecidos quando deles o autor falou.

Ao ler a descrição da Salomé de Moreau, via Huysmans, cria-se uma aura toda misteriosa, buscam-se imagens nos simulacros da escrita e o leitor termina por criar sua própria imagem com base no seu referencial e no descrito. A figura bíblica se apresenta maravilhosa, em detrimento do sentido negativo que possa ter dentro da religião.

Podemos dizer que essa é uma característica especial da criação textual decadente, o uso de muitas imagens, de muitos símbolos que caberão ao leitor decodificar. O que quis o autor dizer, só ele sabe; aos leitores cabe imaginar, isto é, criar suas próprias imagens e interpretações a partir do subsídio da narração ou mesmo descrição. Isso, todavia, acontece quando o autor descreve toda a obra (imagem); sendo essa desconhecida do público, pois não bastaria apenas dizer qual é a obra.

Ao contrário, ocorre quando o autor se utiliza de uma imagem alheia, famosa e conhecida, para criar a sua a ser descrita. Aí não é só o uso de uma obra, é o uso de tudo o que da obra já se falou, não é apenas “A Santa Ceia”, é a “Santa ceia” de Leonardo da Vinci, o que a torna diversa das inúmeras santas ceias que existem no mundo.

Nesse ponto é que, compactuando da mesma dupla linguagem, escrita e pictórica, que José Geraldo Vieira faz uso da pintura e outras artes em seus livros. Na verdade, podemos dizer que ele, como os decadentes, usa das duas formas, ora descreve, retrata a obra, ora apenas cita-lhe o nome do autor.

Como já afirmei, JGV, como os decadentes, transitava pelo mundo da arte e também sobre isso escrevia, por isso é tão presente em sua obra referências a inúmeros pintores, escultores, desenhistas, arquitetos etc., assim, através da leitura de sua obra, podemos dizer que JGV, embora sendo moderno, se filia à ótica decadente de uso da arte como arma contra a vulgaridade da vida normal.

Entretanto, percebemos que, em determinadas obras, a intenção do autor pode ir além dessa, de retirar a obra do medíocre cotidiano. Na verdade, o autor não quer deixar que o leitor crie a sua própria imagem do ocorrido. Usando imagens famosas, de pintores conhecidos, JGV cria um texto em que a referência pictórica se encaixa como uma luva à representação que o leitor tem de fazer. Portanto, é como se ele tutelasse nossa leitura nos dizendo a todo tempo como devemos compor, em nossa mente, tal ou qual personagem. Parece que ele nos tira a liberdade de criação, frustrando a nossa potencialidade de imaginar de acordo com nossa própria bagagem. E como isso se dá?

Desde que começamos nosso trabalho de exame de toda a obra de JGV, notamos o quanto essa forma de escrita usando imagens pictóricas famosas é recorrente. Começando pelo livro “A mulher que fugiu de Sodoma” (há dois meses reeditado, o que já mostra uma retomada de interesse pela obra do autor), elencamos algumas pinturas que são como emblemas da obra. Podemos dizer que cada fase vivida pelos personagens possui uma imagem representativa (uma imagem tutora). Temos principalmente os quadros de Rubens, Ribera etc. Quadros como “A fuga de Lot”, que teve um estudo inacabado com o nome de “Mulher que fugiu de Sodoma”, que representa a fuga de Lúcia, ou o quadro “Descida da cruz”, de Ribera, que pontua a história do romance, representando pictoricamente o que ocorre com o personagem principal, Mário. Ou seja, dois quadros importantes e um estudo que dá nome e também contextualiza a história.

Digamos que já o título representa um quadro, e mais, na mesma história, existe uma relação de compra e venda da obra de arte. Então, o quadro não só representa a história como também faz parte dela.

Em outro livro, “A túnica e os dados”, escrito em 1947, as referências às obras de arte são ainda mais presentes. Nesse, toda história transcorre na Semana Santa, e são muitas referências bíblicas, diretas e indiretas, desde epígrafes até trechos inteiros de discursos. É nesse romance que JGV inova na estrutura romanesca usando cartas dentro da narrativa, dividindo a página no meio, verticalmente, e em cada lado da folha, uma fala ou transcrição de um personagem em seu sonho, numa polifonia narrativa.

Como o texto se relaciona intimamente com a narrativa bíblica, é lógico que as comparações dos personagens do livro com os da Bíblia se faz presente, não só na relação feita pelo leitor, mas pela própria história na sua estrutura.

No 1º capítulo, como não pensar em João Batista, quando o título diz: “lá vai numa bandeja um personagem”, mesmo que esse personagem tenha mais tarde uma nova representação ou até mesmo suma da narrativa sem deixar vestígio, o que às vezes ocorre nas longas narrativas de JGV.

Mas voltando à relação da arte escrita com outras formas de arte como a pintura, temos, então, nesse livro, mais ou menos 36 artistas citados, pintores e suas imagens, e não é por ser pedante, ou por querer mostrar conhecimento; entendemos que as obras surgem no texto em lugares apropriados, conduzindo a imagem que o leitor fará da obra. Digamos que aprendemos sobre artes plásticas através dessa narrativa romanesca, que, mesmo sendo uma escrita contemporânea, dona de uma visão cosmopolita e urbana, ela não é uma escrita econômica. Muito pelo contrário, a escrita de JGV está justamente no que chamamos de escrita de labirinto, ou no labirinto da escrita, que parece algo para lá de precioso na sua estruturação, oposta, por exemplo, à escrita de um Graciliano Ramos, de um Rubem Fonseca e outros. Essa escrita de JGV faz com que nos transportemos à cena que ocorre, como se ele montasse, num estúdio, um cenário, com todos os elementos, e nós estivéssemos ali, presenciando o que acontece como o próprio narrador/observador, ou melhor, narrador onisciente que ele é.

Exemplo é a conversa dos mineiros na estação de trem em São Paulo, onde sentimos a presença de cheiros, clima, barulhos e tudo mais que lembra àquele espaço.

Nessa estação ferroviária, ocorre a 1ª citação pictórica de Renoir, quando fala das crianças na estação, que parecem saídas de um quadro, “duas crianças ricas que pareciam se terem despregado d’alguma tela de Renoir furando a película do esmalte” (Vieira,1947, p. 32).

Quando a narração muda seu espaço e entra no trem, toma outro rumo, e o narrador passa a falar de um monólogo que existiria na cabeça de um intelectual passageiro do trem, ou seja, outra voz, que nada tem com a história e que surge no meio da viagem.

Esse que seria o discurso do intelectual diz que, viajando de 2ª classe, sentia-se “pertencendo como figura humana ao quadro de Daumier e de Tarsila, chamado “Segunda classe” ( Vieira,1947, p. 35), isto é, o narrador, nesse ponto, esquece que narra uma história e se intromete com suas divagações a respeito do que pensam os intelectuais. Saindo dos intelectuais, o narrador se detém no caminho que os passageiros percorrem até a segunda classe; nesse caminho, ele encontra com um velho vindo do Rio São Francisco, que tem os netos dormindo sobre ele e diz que essa imagem imita o Laocoonte.

Assim, a imagem do retirante nordestino largado no trem com as crianças é comparada à imagem clássica, numa fusão do cotidiano vulgar com a arte grega.

No espaço da 2ª classe, novas colocações sobre o quadro do mesmo nome e a retomada da história principal de Jaiminho, ou seja, a narrativa é recortada pelas divagações do narrador, que do nada pára de narrar a trama e foge para um outro contexto, dos devaneios.

Saindo do trem, o espaço passa a ser as ruas de São Paulo, o narrador conta o passeio de Jaiminho pela cidade e o encanto do menino com um realejo carregado por um Italiano. A imagem do italiano é descrita, “calças de veludo, boina de pelúcia, sapatos de lona, barriguinha de irmão de ordem da Úmbria, ar aparvalhado de figura de tela de Stefano de Giovanni” (Vieira,1947, p. 56). E segue na cena, em que o italiano chamava o periquito do realejo que tinha saído, dizendo: “então o periquito, como um Nijinski em jardim de sanatório para psicopatas, lá veio de viés, titubeou e entrou na gaiola”, o italiano, zás, fechou a gaiola. Também é recorrente nas narrativas de JGV o uso da transcrição de discurso em linguagem coloquial, com muita utilização de onomatopéias.

O texto então desfoca do realejo, mas não sai da rua, Jaiminho continua seu passeio, o narrador olha pelos olhos do personagem principal, mas não dá voz a ele, e como um flanêur segue falando e observando as atitudes das pessoas diante desses espetáculos de rua, como param os transeuntes, e como viram crianças no espetáculo da cidade. “Até mesmo uma senhora refugiada da guerra escuta a música, orgue de barbárie, e pára observando as caras de Gueux de Richepin que a comovem” (Vieira,1947, p. 57). Todo esse capítulo está localizado em São Paulo capital, o espaço urbano é o foco com seus personagens flanêurs, “a Praça da Sé é um corte transverso de Babel” (Vieira,1947, p. 63). E eis que nessa Babel aparecem as mulheres do exército da salvação, essas pareciam diaconisas pintadas por Blake (Vieira, 1947, p. 63), que abriam a bíblia em plena rua entoando um salmo que as pessoas começavam a repetir. Não é demais dizer que, além da galeria de arte que o texto apresenta, também poderíamos dizer que ele possui uma trilha sonora e uma fílmica. Isso porque todas as cenas são presenteadas com uma música (o que daria um outro trabalho, por si só).

Ainda nesse mesmo passeio de Jaiminho é que surgem outros personagens, os apóstolos, que vão seguindo Jesus. Quando Jaiminho os agrega ao seu caminho e os leva para dormirem no seu porão, um deles, Stephen, surge como numa tela de Rouault, talhada em branco e em preto, mais uma imagem revelada.

Nesse trecho da narrativa, iniciam-se os sonhos de Absalão e de Phil, dois dos apóstolos, é nesse ponto que a página se divide ao meio verticalmente, mostrando a concomitância temporal dos sonhadores. No sonho de Phil, aparece a Espanha comparada a uma tela de Velásquez nos chifres de um touro. Fora esses dois sonhos, outro acontece e é enunciado por um subtítulo. Esse sonho é de Jaiminho, mas é o narrador quem de novo se perde cortando a história e viajando nas imagens.

São incontáveis as referências desse sonho. Narra-se um ato ecumênico, um mergulho para o Vale do Armagedon. As imagens são de uma grande mistura de escritores, Poe, Rilke, Gogol, Karamazoff, de pintores, Orcagna, Taddeo Gaddi, Portinari, Tintoretto, Goya, Rivera, Matisse, Salvador Dali, de arquitetos, Lesseps, Corbusier, Huran Abi, de escultores, Rude e Rodin, de dramaturgos, Sófocles, Shakespeare, Corneille, Ibsen, Duvivier, Gil Vicente. Surgem ainda livros importantes da humanidade, rituais famosos, músicas, uma verdadeira sinfonia que vai do clássico ao jazz e muito mais. Esse sonho é verdadeira Babel de imagens de todo o mundo e de tudo. Chega a ser exaustivo o excesso de elementos e referências de todos os campos da arte, da geografia, de raças, lugares etc. É marcante ainda a citação de todos os leprosários do mundo e mais algumas imagens de pinturas para finalizar o sonho surreal. O Sabbath Phantoms de Kurt Seligmann ou Moment of mistery de Castelon, ainda The path of de air de Magritte, os riscos abstratos de Josef Albers ou o desenho louco de Paul Klee, The departure of the ghost. Ou seja, a arte, desde a clássica até as vanguardas estéticas do início do século XX, serve para essa elocubração de Jaiminho.

Acabado o sonho que é a maior escapadela do narrador, a história retoma seu rumo e até o final novos pintores são citados, mas não menos filmes como Casablanca, músicas e compositores e em mais uma carta há a referência à cultura francesa. Escritores como Montaigne, Bérgson, Fénelon, Maritain, Moliere, Lenormand, Proust, Balzac, Stendhal, Henrriot Bernanos, Green; pintores, Manet, Seurat, as telas de Utrillo, Corot, Gluck, Rameau, Lully, compositores, Ravel, Debussy surgem em meio à trama, aí sem paradas na narrativa, mas como comparações, com a antiguidade clássica ou não. Na página 132, o personagem Phill, no antiquário de uma francesa, descobre preciosidades, ele queria comprar um presente para sua Calipso, e descobre um Gobelin na parede “com uma cena bíblica, com a pureza primitiva dum Cimabue”, umas “telas supra-realistas de Leger, Chirico e Ozenfant.

Phil, depois que sai da loja, deixa a dona francesa relendo uma carta que recebera do noivo onde ele a chama de Penélope e fala do amor que não é delírio de Poe e que o leva como um arcanjo de Rilke.

Após essa carta, o cotidiano irrompe para a história prosseguir, busca-se um Cristo para uma encenação da paixão. Vários personagens possuem momentos diversos que são focados em subtítulos dentro do romance, mais uma variação na estrutura romanesca convencional, uma experimentação em que o foco vai para um outro personagem, João Bernardo, e sua vida. O espaço da narrativa aí é plural, sai de Santos e num flash back volta ao Rio de Janeiro contando toda a saga desse homem. Na estrutura do livro, o narrador aparece num subtítulo em letras maiúsculas, perguntando machadianamente: “Vale a pena viver, caro leitor?”. E retorna à vida de João Bernardo.

No capítulo 4ª feira de trevas, aparecem as mulheres Hemengarda, cuja beleza era à Boltticelli (Vieira, 1947, p. 172), e suas tias, que pareciam aias maeterlinckianas. Aí é mostrada a saga de Hemengarda e sua doença, e a personagem é comparada à pintura de Gainsborough, citado também o conto de Kipling, um elefante diante de uma tartaruga, e mais uma inovação, duas lendas indígenas são contadas e a referência à empregada Felipa, outra mulher, que mais parecia um duende pintado por Gauguin. Ainda no campo doméstico surge a representação do coronel sentado num escalda-pé, que lembra a estátua de Donatello.

O grande clímax do romance é construído com um espetáculo teatral, A paixão de Cristo, que é feita por não atores. Para compor esse teatro, é narrada toda a produção do evento desde o cenário até o figurino, em que cada cena sacra era montada de acordo com um quadro famoso sendo usado: Giotto, Taddeu Gaddi, Lorenzetti, Fra Angélico, da Vinci, Rafael, Grecco, Dürer, Rembrant, Donatello Gaujon, Rodin e Epstein. Ainda faziam parte da produção do espetáculo a trilha sonora que aparece na página 213.

Todo o cenário que é montado para o espetáculo tem sua origem em obras famosas. O quadro a “Transfiguração no monte Tabor”, “A genealogia de Cristo”, “Anunciação” – montada com parte de Giotto e parte de escultura de Donatello –, “Belém”, “Fuga para o Egito”, “Matança dos inocentes”, ou seja, cada momento da história bíblica foi eternizado no palco. Nos cartazes de divulgação, também eram usadas obras como “Cristo na Colina”, reprodução da tela de Velásquez, “Cristo em San Plácido”, “Ressureição”, de um pintor moderno, “Matança dos inocentes”, “A fuga para ao Egito”, “As bem aventuranças”.

Todos quadros que pensamos já conhecidos para um crítico de arte. A montagem conta ainda com um Cristo representado por Eduardo, aos moldes de Leonardo Da Vinci (Vieira,1947, p. 281), e o momento final, a “Transfiguração”, no quadro de Rafael (Vieira,1947, p. 288).

Como a encenação é o clímax da história de alguns personagens, como Jaiminho, por exemplo, que depois desse evento some, imaginamos que nada mais acontecerá. Ledo engano, ainda resta ao narrador fechar o personagem João Bernardo, que em nossa concepção é também um protagonista. Esse será o indivíduo tocado pelo destino, aquele que sofre como o Cristo. Esse é que pode de fato ser comparado à figura bíblica, que terá a sorte no final, ditada pela presença da túnica e dos dados.

É interessante também nesse final do livro que o narrador retoma o seu diálogo com o leitor comparando o personagem com uma seriema, que parecia a caricatura de Bernard Shaw (Vieira, 1947, p. 300), e é nesse ponto exato que temos a certeza de que a intenção do narrador é conduzir as imagens que o leitor deve criar. Isso porque, diz o Narrador – “Quanto a Seriema – Não que o Velho Bernardo pensasse isso, mas o leitor, agora” (Vieira,1947, p.300), ou seja, o leitor não tem a referência de Bernard Shaw, só lembrará, só conhecerá, porque o narrador falou. Então pensamos que de fato o objetivo dessa escrita é justamente compilar duas leituras e objetos artísticos. Interligando essas duas artes por suas imagens e discurso, o narrador não sugere, ele mostra sem dizer, ele na verdade cria o simulacro, que é a visão de uma obra por outra. Como se usasse um filtro na realidade que descreve, ou que inventa. Seu filtro aí é a obra de arte já conhecida. A banalidade da imagem criada então se desfaz, e não é mais um negro qualquer que é encontrado pelo coronel, é o negro modelo Portinari (Vieira, 1947, p. 225) e ainda no final o portal do navio não é um portal , é o portal da tela de Chirico. Na mesma linha, o fim de João Bernardo remete ao “Ulisses” de Joyce (Vieira,1947,p. 311) e o boteco do porto é um bar desenhado por Touluse Lautrec, assim como todos os outros já citados, só para lembrar, o Laocoote e o nordestino com as crianças.

Assim, cremos que, nesse romance, JGV tenta de fato experimentar na sua criação artística. Mas é um experimento consciente, que se utiliza do suporte das artes plásticas para dar maior força a sua própria criação, que dessa maneira foge ao trivial clássico narrativo e se impõe como uma arte sujeita às mais variadas formas de linguagens e leituras, basta lembrar os filmes, músicas, quadros, livros, tudo que é citado no texto como numa criação auto-referente.

VIEIRA, José Geraldo. A túnica e os Dados. Rio de Janeiro: edição da livraria do globo, 1947.

Texto publicado no livro: Fulgurações:parcerias textuais e o decadentismo. UFRJ/Cnpq/FNB/Confraria do vento, 2009.