sábado, 2 de abril de 2011

Nas lacunas da narrativa moderna de José Geraldo Vieira, o encontro com o discurso decadentista

Resumo:

Neste texto, mostraremos como José Geraldo Vieira, em a “Túnica e os Dados”, recorre a mais um elemento da estética decadentista, a utilização de obras de representação pictórica na construção de sua escrita, seja trazendo novos artistas e suas criações ou apenas conduzindo o leitor a uma imagem já preconcebida pelo narrador, e não pelo leitor em seu imaginário. Como no Decadentismo, a obra de arte é arma em punho na fuga da vulgaridade do cotidiano, e sua utilização se dá através da escrita moderna de JGV, que usa elementos como a intertextualidade, a polifonia e as mais variadas maneiras de dizer e ler o texto literário.

O texto:

Que pintura e literatura são duas formas diversas de representação, recriação da realidade, já sabemos, mas não é sempre que podemos estabelecer ou encontrar entre elas uma relação de intimidade. Podemos dizer que nem sempre a literatura, ao criar suas imagens, se relaciona com a pintura.

Isso porque tanto o pintor quanto o escritor possuem traços singulares, especiais de ver o mundo. Digamos que formas independentes. O pintor não precisa que o escritor traduza em palavras sua arte, assim como o escritor não precisa que o pintor, através de sua leitura, crie imagens reais para o que ele escreve.

Entretanto, isso muitas vezes ocorre. Quando um escritor, em seu livro, se refere a uma determinada imagem já existente, não só pelo seu título, mas busca traduzi-la com palavras, defini-la através de uma metalinguagem, estamos diante da representação de um objeto estético real, que ao mesmo tempo, possui características diversas. Isto é, quando um escritor, com suas palavras, passa a descrever, retratar um quadro, ele não apenas o retrata, copia, como uma fotografia, ele, através de seu olhar, vai além da forma, ele recria a imagem com suas palavras e emoção, ele dá um novo viço, interpreta. Ao usar palavras fortes ou fracas, ele pode convencer o leitor, dar força à imagem ou simplesmente torná-la indiferente. Ele pode também, pelo seu estilo, tornar a imagem conhecida através de metáforas, de comparações, e pode, o que é mais incrível, fazer com que o leitor imagine algo completamente diverso do que o que ele viu. Não sabemos se a palavra, ao final, consegue dar conta da imagem, mas certamente ela a recria.

Por outro lado, o pintor, ao se influenciar por um texto, possui uma independência ainda maior. Os olhos do pintor distinguem-se dos do escritor, aquele enxerga cores, formas, proporções e ângulos diversos, detalhes ínfimos que a palavra não consegue abarcar. Certamente que uma obra escrita, ao se tornar uma obra pictórica, jamais será a mesma. A subjetividade do pintor interferirá diretamente nesse resultado, e o que surgirá poderá ser completamente diverso do que o autor/escritor imaginou.

Quando um escritor pede a um desenhista que colabore e desenhe sua obra, estabelece-se aí uma parceria e temos duas linguagens numa só obra, que podem ou não apresentar o mesmo significado quando lidas juntas ou separadas.

Partindo desses pontos, reparamos como esse exercício com duas linguagens é presente no Decadentismo e o quanto é interessante compararmos as descrições dos textos com as obras reais. E por que isso acontece?

Alguns escritores decadentes, desde Baudelaire, Huysmans, Oscar Wilde, João do Rio, até Elysio de Carvalho, possuem em sua bibliografia textos de análise da arte pictórica. Ou seja, esses autores também transitavam no campo das artes plásticas como críticos. Baudelaire fala sobre o salão de 1859, Huysmans, em seus livros, fez questão de dar conhecimento ao público sobre diversos pintores ainda sem prestígio e cujas obras ficaram eternizadas pela descrição por ele feita. Como exemplo, pensamos em dois quadros de Gustavo Moreau recriados através das palavras por Huysmans. Quadros da coleção do Conde Des Esseintes, como a “Aparição” e “Salomé”, que eram desconhecidos quando deles o autor falou.

Ao ler a descrição da Salomé de Moreau, via Huysmans, cria-se uma aura toda misteriosa, buscam-se imagens nos simulacros da escrita e o leitor termina por criar sua própria imagem com base no seu referencial e no descrito. A figura bíblica se apresenta maravilhosa, em detrimento do sentido negativo que possa ter dentro da religião.

Podemos dizer que essa é uma característica especial da criação textual decadente, o uso de muitas imagens, de muitos símbolos que caberão ao leitor decodificar. O que quis o autor dizer, só ele sabe; aos leitores cabe imaginar, isto é, criar suas próprias imagens e interpretações a partir do subsídio da narração ou mesmo descrição. Isso, todavia, acontece quando o autor descreve toda a obra (imagem); sendo essa desconhecida do público, pois não bastaria apenas dizer qual é a obra.

Ao contrário, ocorre quando o autor se utiliza de uma imagem alheia, famosa e conhecida, para criar a sua a ser descrita. Aí não é só o uso de uma obra, é o uso de tudo o que da obra já se falou, não é apenas “A Santa Ceia”, é a “Santa ceia” de Leonardo da Vinci, o que a torna diversa das inúmeras santas ceias que existem no mundo.

Nesse ponto é que, compactuando da mesma dupla linguagem, escrita e pictórica, que José Geraldo Vieira faz uso da pintura e outras artes em seus livros. Na verdade, podemos dizer que ele, como os decadentes, usa das duas formas, ora descreve, retrata a obra, ora apenas cita-lhe o nome do autor.

Como já afirmei, JGV, como os decadentes, transitava pelo mundo da arte e também sobre isso escrevia, por isso é tão presente em sua obra referências a inúmeros pintores, escultores, desenhistas, arquitetos etc., assim, através da leitura de sua obra, podemos dizer que JGV, embora sendo moderno, se filia à ótica decadente de uso da arte como arma contra a vulgaridade da vida normal.

Entretanto, percebemos que, em determinadas obras, a intenção do autor pode ir além dessa, de retirar a obra do medíocre cotidiano. Na verdade, o autor não quer deixar que o leitor crie a sua própria imagem do ocorrido. Usando imagens famosas, de pintores conhecidos, JGV cria um texto em que a referência pictórica se encaixa como uma luva à representação que o leitor tem de fazer. Portanto, é como se ele tutelasse nossa leitura nos dizendo a todo tempo como devemos compor, em nossa mente, tal ou qual personagem. Parece que ele nos tira a liberdade de criação, frustrando a nossa potencialidade de imaginar de acordo com nossa própria bagagem. E como isso se dá?

Desde que começamos nosso trabalho de exame de toda a obra de JGV, notamos o quanto essa forma de escrita usando imagens pictóricas famosas é recorrente. Começando pelo livro “A mulher que fugiu de Sodoma” (há dois meses reeditado, o que já mostra uma retomada de interesse pela obra do autor), elencamos algumas pinturas que são como emblemas da obra. Podemos dizer que cada fase vivida pelos personagens possui uma imagem representativa (uma imagem tutora). Temos principalmente os quadros de Rubens, Ribera etc. Quadros como “A fuga de Lot”, que teve um estudo inacabado com o nome de “Mulher que fugiu de Sodoma”, que representa a fuga de Lúcia, ou o quadro “Descida da cruz”, de Ribera, que pontua a história do romance, representando pictoricamente o que ocorre com o personagem principal, Mário. Ou seja, dois quadros importantes e um estudo que dá nome e também contextualiza a história.

Digamos que já o título representa um quadro, e mais, na mesma história, existe uma relação de compra e venda da obra de arte. Então, o quadro não só representa a história como também faz parte dela.

Em outro livro, “A túnica e os dados”, escrito em 1947, as referências às obras de arte são ainda mais presentes. Nesse, toda história transcorre na Semana Santa, e são muitas referências bíblicas, diretas e indiretas, desde epígrafes até trechos inteiros de discursos. É nesse romance que JGV inova na estrutura romanesca usando cartas dentro da narrativa, dividindo a página no meio, verticalmente, e em cada lado da folha, uma fala ou transcrição de um personagem em seu sonho, numa polifonia narrativa.

Como o texto se relaciona intimamente com a narrativa bíblica, é lógico que as comparações dos personagens do livro com os da Bíblia se faz presente, não só na relação feita pelo leitor, mas pela própria história na sua estrutura.

No 1º capítulo, como não pensar em João Batista, quando o título diz: “lá vai numa bandeja um personagem”, mesmo que esse personagem tenha mais tarde uma nova representação ou até mesmo suma da narrativa sem deixar vestígio, o que às vezes ocorre nas longas narrativas de JGV.

Mas voltando à relação da arte escrita com outras formas de arte como a pintura, temos, então, nesse livro, mais ou menos 36 artistas citados, pintores e suas imagens, e não é por ser pedante, ou por querer mostrar conhecimento; entendemos que as obras surgem no texto em lugares apropriados, conduzindo a imagem que o leitor fará da obra. Digamos que aprendemos sobre artes plásticas através dessa narrativa romanesca, que, mesmo sendo uma escrita contemporânea, dona de uma visão cosmopolita e urbana, ela não é uma escrita econômica. Muito pelo contrário, a escrita de JGV está justamente no que chamamos de escrita de labirinto, ou no labirinto da escrita, que parece algo para lá de precioso na sua estruturação, oposta, por exemplo, à escrita de um Graciliano Ramos, de um Rubem Fonseca e outros. Essa escrita de JGV faz com que nos transportemos à cena que ocorre, como se ele montasse, num estúdio, um cenário, com todos os elementos, e nós estivéssemos ali, presenciando o que acontece como o próprio narrador/observador, ou melhor, narrador onisciente que ele é.

Exemplo é a conversa dos mineiros na estação de trem em São Paulo, onde sentimos a presença de cheiros, clima, barulhos e tudo mais que lembra àquele espaço.

Nessa estação ferroviária, ocorre a 1ª citação pictórica de Renoir, quando fala das crianças na estação, que parecem saídas de um quadro, “duas crianças ricas que pareciam se terem despregado d’alguma tela de Renoir furando a película do esmalte” (Vieira,1947, p. 32).

Quando a narração muda seu espaço e entra no trem, toma outro rumo, e o narrador passa a falar de um monólogo que existiria na cabeça de um intelectual passageiro do trem, ou seja, outra voz, que nada tem com a história e que surge no meio da viagem.

Esse que seria o discurso do intelectual diz que, viajando de 2ª classe, sentia-se “pertencendo como figura humana ao quadro de Daumier e de Tarsila, chamado “Segunda classe” ( Vieira,1947, p. 35), isto é, o narrador, nesse ponto, esquece que narra uma história e se intromete com suas divagações a respeito do que pensam os intelectuais. Saindo dos intelectuais, o narrador se detém no caminho que os passageiros percorrem até a segunda classe; nesse caminho, ele encontra com um velho vindo do Rio São Francisco, que tem os netos dormindo sobre ele e diz que essa imagem imita o Laocoonte.

Assim, a imagem do retirante nordestino largado no trem com as crianças é comparada à imagem clássica, numa fusão do cotidiano vulgar com a arte grega.

No espaço da 2ª classe, novas colocações sobre o quadro do mesmo nome e a retomada da história principal de Jaiminho, ou seja, a narrativa é recortada pelas divagações do narrador, que do nada pára de narrar a trama e foge para um outro contexto, dos devaneios.

Saindo do trem, o espaço passa a ser as ruas de São Paulo, o narrador conta o passeio de Jaiminho pela cidade e o encanto do menino com um realejo carregado por um Italiano. A imagem do italiano é descrita, “calças de veludo, boina de pelúcia, sapatos de lona, barriguinha de irmão de ordem da Úmbria, ar aparvalhado de figura de tela de Stefano de Giovanni” (Vieira,1947, p. 56). E segue na cena, em que o italiano chamava o periquito do realejo que tinha saído, dizendo: “então o periquito, como um Nijinski em jardim de sanatório para psicopatas, lá veio de viés, titubeou e entrou na gaiola”, o italiano, zás, fechou a gaiola. Também é recorrente nas narrativas de JGV o uso da transcrição de discurso em linguagem coloquial, com muita utilização de onomatopéias.

O texto então desfoca do realejo, mas não sai da rua, Jaiminho continua seu passeio, o narrador olha pelos olhos do personagem principal, mas não dá voz a ele, e como um flanêur segue falando e observando as atitudes das pessoas diante desses espetáculos de rua, como param os transeuntes, e como viram crianças no espetáculo da cidade. “Até mesmo uma senhora refugiada da guerra escuta a música, orgue de barbárie, e pára observando as caras de Gueux de Richepin que a comovem” (Vieira,1947, p. 57). Todo esse capítulo está localizado em São Paulo capital, o espaço urbano é o foco com seus personagens flanêurs, “a Praça da Sé é um corte transverso de Babel” (Vieira,1947, p. 63). E eis que nessa Babel aparecem as mulheres do exército da salvação, essas pareciam diaconisas pintadas por Blake (Vieira, 1947, p. 63), que abriam a bíblia em plena rua entoando um salmo que as pessoas começavam a repetir. Não é demais dizer que, além da galeria de arte que o texto apresenta, também poderíamos dizer que ele possui uma trilha sonora e uma fílmica. Isso porque todas as cenas são presenteadas com uma música (o que daria um outro trabalho, por si só).

Ainda nesse mesmo passeio de Jaiminho é que surgem outros personagens, os apóstolos, que vão seguindo Jesus. Quando Jaiminho os agrega ao seu caminho e os leva para dormirem no seu porão, um deles, Stephen, surge como numa tela de Rouault, talhada em branco e em preto, mais uma imagem revelada.

Nesse trecho da narrativa, iniciam-se os sonhos de Absalão e de Phil, dois dos apóstolos, é nesse ponto que a página se divide ao meio verticalmente, mostrando a concomitância temporal dos sonhadores. No sonho de Phil, aparece a Espanha comparada a uma tela de Velásquez nos chifres de um touro. Fora esses dois sonhos, outro acontece e é enunciado por um subtítulo. Esse sonho é de Jaiminho, mas é o narrador quem de novo se perde cortando a história e viajando nas imagens.

São incontáveis as referências desse sonho. Narra-se um ato ecumênico, um mergulho para o Vale do Armagedon. As imagens são de uma grande mistura de escritores, Poe, Rilke, Gogol, Karamazoff, de pintores, Orcagna, Taddeo Gaddi, Portinari, Tintoretto, Goya, Rivera, Matisse, Salvador Dali, de arquitetos, Lesseps, Corbusier, Huran Abi, de escultores, Rude e Rodin, de dramaturgos, Sófocles, Shakespeare, Corneille, Ibsen, Duvivier, Gil Vicente. Surgem ainda livros importantes da humanidade, rituais famosos, músicas, uma verdadeira sinfonia que vai do clássico ao jazz e muito mais. Esse sonho é verdadeira Babel de imagens de todo o mundo e de tudo. Chega a ser exaustivo o excesso de elementos e referências de todos os campos da arte, da geografia, de raças, lugares etc. É marcante ainda a citação de todos os leprosários do mundo e mais algumas imagens de pinturas para finalizar o sonho surreal. O Sabbath Phantoms de Kurt Seligmann ou Moment of mistery de Castelon, ainda The path of de air de Magritte, os riscos abstratos de Josef Albers ou o desenho louco de Paul Klee, The departure of the ghost. Ou seja, a arte, desde a clássica até as vanguardas estéticas do início do século XX, serve para essa elocubração de Jaiminho.

Acabado o sonho que é a maior escapadela do narrador, a história retoma seu rumo e até o final novos pintores são citados, mas não menos filmes como Casablanca, músicas e compositores e em mais uma carta há a referência à cultura francesa. Escritores como Montaigne, Bérgson, Fénelon, Maritain, Moliere, Lenormand, Proust, Balzac, Stendhal, Henrriot Bernanos, Green; pintores, Manet, Seurat, as telas de Utrillo, Corot, Gluck, Rameau, Lully, compositores, Ravel, Debussy surgem em meio à trama, aí sem paradas na narrativa, mas como comparações, com a antiguidade clássica ou não. Na página 132, o personagem Phill, no antiquário de uma francesa, descobre preciosidades, ele queria comprar um presente para sua Calipso, e descobre um Gobelin na parede “com uma cena bíblica, com a pureza primitiva dum Cimabue”, umas “telas supra-realistas de Leger, Chirico e Ozenfant.

Phil, depois que sai da loja, deixa a dona francesa relendo uma carta que recebera do noivo onde ele a chama de Penélope e fala do amor que não é delírio de Poe e que o leva como um arcanjo de Rilke.

Após essa carta, o cotidiano irrompe para a história prosseguir, busca-se um Cristo para uma encenação da paixão. Vários personagens possuem momentos diversos que são focados em subtítulos dentro do romance, mais uma variação na estrutura romanesca convencional, uma experimentação em que o foco vai para um outro personagem, João Bernardo, e sua vida. O espaço da narrativa aí é plural, sai de Santos e num flash back volta ao Rio de Janeiro contando toda a saga desse homem. Na estrutura do livro, o narrador aparece num subtítulo em letras maiúsculas, perguntando machadianamente: “Vale a pena viver, caro leitor?”. E retorna à vida de João Bernardo.

No capítulo 4ª feira de trevas, aparecem as mulheres Hemengarda, cuja beleza era à Boltticelli (Vieira, 1947, p. 172), e suas tias, que pareciam aias maeterlinckianas. Aí é mostrada a saga de Hemengarda e sua doença, e a personagem é comparada à pintura de Gainsborough, citado também o conto de Kipling, um elefante diante de uma tartaruga, e mais uma inovação, duas lendas indígenas são contadas e a referência à empregada Felipa, outra mulher, que mais parecia um duende pintado por Gauguin. Ainda no campo doméstico surge a representação do coronel sentado num escalda-pé, que lembra a estátua de Donatello.

O grande clímax do romance é construído com um espetáculo teatral, A paixão de Cristo, que é feita por não atores. Para compor esse teatro, é narrada toda a produção do evento desde o cenário até o figurino, em que cada cena sacra era montada de acordo com um quadro famoso sendo usado: Giotto, Taddeu Gaddi, Lorenzetti, Fra Angélico, da Vinci, Rafael, Grecco, Dürer, Rembrant, Donatello Gaujon, Rodin e Epstein. Ainda faziam parte da produção do espetáculo a trilha sonora que aparece na página 213.

Todo o cenário que é montado para o espetáculo tem sua origem em obras famosas. O quadro a “Transfiguração no monte Tabor”, “A genealogia de Cristo”, “Anunciação” – montada com parte de Giotto e parte de escultura de Donatello –, “Belém”, “Fuga para o Egito”, “Matança dos inocentes”, ou seja, cada momento da história bíblica foi eternizado no palco. Nos cartazes de divulgação, também eram usadas obras como “Cristo na Colina”, reprodução da tela de Velásquez, “Cristo em San Plácido”, “Ressureição”, de um pintor moderno, “Matança dos inocentes”, “A fuga para ao Egito”, “As bem aventuranças”.

Todos quadros que pensamos já conhecidos para um crítico de arte. A montagem conta ainda com um Cristo representado por Eduardo, aos moldes de Leonardo Da Vinci (Vieira,1947, p. 281), e o momento final, a “Transfiguração”, no quadro de Rafael (Vieira,1947, p. 288).

Como a encenação é o clímax da história de alguns personagens, como Jaiminho, por exemplo, que depois desse evento some, imaginamos que nada mais acontecerá. Ledo engano, ainda resta ao narrador fechar o personagem João Bernardo, que em nossa concepção é também um protagonista. Esse será o indivíduo tocado pelo destino, aquele que sofre como o Cristo. Esse é que pode de fato ser comparado à figura bíblica, que terá a sorte no final, ditada pela presença da túnica e dos dados.

É interessante também nesse final do livro que o narrador retoma o seu diálogo com o leitor comparando o personagem com uma seriema, que parecia a caricatura de Bernard Shaw (Vieira, 1947, p. 300), e é nesse ponto exato que temos a certeza de que a intenção do narrador é conduzir as imagens que o leitor deve criar. Isso porque, diz o Narrador – “Quanto a Seriema – Não que o Velho Bernardo pensasse isso, mas o leitor, agora” (Vieira,1947, p.300), ou seja, o leitor não tem a referência de Bernard Shaw, só lembrará, só conhecerá, porque o narrador falou. Então pensamos que de fato o objetivo dessa escrita é justamente compilar duas leituras e objetos artísticos. Interligando essas duas artes por suas imagens e discurso, o narrador não sugere, ele mostra sem dizer, ele na verdade cria o simulacro, que é a visão de uma obra por outra. Como se usasse um filtro na realidade que descreve, ou que inventa. Seu filtro aí é a obra de arte já conhecida. A banalidade da imagem criada então se desfaz, e não é mais um negro qualquer que é encontrado pelo coronel, é o negro modelo Portinari (Vieira, 1947, p. 225) e ainda no final o portal do navio não é um portal , é o portal da tela de Chirico. Na mesma linha, o fim de João Bernardo remete ao “Ulisses” de Joyce (Vieira,1947,p. 311) e o boteco do porto é um bar desenhado por Touluse Lautrec, assim como todos os outros já citados, só para lembrar, o Laocoote e o nordestino com as crianças.

Assim, cremos que, nesse romance, JGV tenta de fato experimentar na sua criação artística. Mas é um experimento consciente, que se utiliza do suporte das artes plásticas para dar maior força a sua própria criação, que dessa maneira foge ao trivial clássico narrativo e se impõe como uma arte sujeita às mais variadas formas de linguagens e leituras, basta lembrar os filmes, músicas, quadros, livros, tudo que é citado no texto como numa criação auto-referente.

VIEIRA, José Geraldo. A túnica e os Dados. Rio de Janeiro: edição da livraria do globo, 1947.

Texto publicado no livro: Fulgurações:parcerias textuais e o decadentismo. UFRJ/Cnpq/FNB/Confraria do vento, 2009.

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