Resumo: O texto analisa as representações da figura de Salomé através das várias formas de arte. Transita pela literatura, música, cinema, teatro e pintura. Explica como imagem da Salomé de Oscar Wilde tornou-se um emblema da transição do século XIX para o século XX e ainda sobrevive no século XXI como uma figura mítica e transgressora.
Salomé uma personagem interdisciplinar
A cena finissecular européia (digo, final do século XIX), fez voltar à tona uma figura bíblica, Salomé. Em sua dança vertiginosa, em seu giro inebriante e espiral essa figura nos remete não só ao imaginário europeu dessa época mas também nos faz entender um pouco melhor essa passagem epocal, traduzida pelo rompimento com a tradição e o surgimento da modernidade, que traz em si todo um universo de coisas novas e híbridas, as quais a razão não dá conta de explicar.
Mas que figura é essa? E em que ponto pode uma figura bíblica, teoricamente tradicional, representar o novo que surge com a modernidade? Como pode essa figura transitar em diversas disciplinas como pintura, filosofia, literatura, dança, teatro, cinema? Nossa resposta é simples, ao buscar uma figura que simbolizasse aquele momento histórico, social e artístico, os artistas veem Salomé como ícone do que surgia, como representação de um movimento nascituro. Isso porque, apesar de antiga, tal figura tinha na sua concepção a transgressão, o mistério, o que não era facilmente entendido pelas vias da razão. Salomé simbolizava ao mesmo tempo coisas paradoxais, ela trazia em sua dança, em seu giro, todas as contradições daquele momento e também todas as problematizações recorrentes no Estilo Decadente. Por vias indiretas ela questiona os binômios natureza/cultura, natural/artificial, cena/obscena, palco/bastidores. Todos esses binômios podem facilmente serem percebidos na própria narrativa da história de Salomé, inúmeras vezes refeita por diversos autores, desde a sua primeira narrativa que foi na Bíblia. Por questionar esses binômios poderíamos dizer que Salomé vai além da própria modernidade, ingressando até mesmo no que hoje chamamos de pós-modernidade, Ela é e não é, ela é a representação que dela se faz em cada época. E se prestarmos atenção tal representação não se esgota.Quando falamos em uma personagem interdisciplinar, focamos nossos olhos para tudo que ela já representou e representa como personagem literário, ou nas idéias que simboliza, na coreografia que dança no teatro e no cinema, como a Salomé de Carlos Saura, pós-moderna, ou ainda como uma pintura sempre refeita pelos mais talentosos pintores.
Sem nos preocuparmos muito com datas, tomaremos como primeiro exemplo da utilização dessa figura simbólica(de Salomé) a obra de J.K.Huysmans, Às avessas, livro considerado a bíblia do decadentismo com sua primeira publicação em 1884. Nesse livro, Salomé aparece descrita pelo narrador por duas vezes, na verdade, o narrador descreve dois quadros do pintor Gustave Moreau.O primeiro quadro chamado Salomé e o segundo quadro chamado Aparição. Em ambas as descrições a imagem sugerida sempre mexe com os sentidos humanos, causando uma ebulição, um sentimento de inquietude e estranhamento, onde se misturam o corpo e a dança numa hibridização sensual e contraditória dos elementos que compõem tal personagem, mulher/animal; ser humano/ser divino; ser natural/ser artificial; mortalidade/imortalidade; sagrado/profano e várias outras dualidades que fazem parte do ser humano e que foram principalmente afloradas no final do século.
O primeiro quadro, Salomé, de Moreau, descrito por Huysmans (1987,p.84) diz o seguinte:
A face recolhida numa expressão solene, quase augusta, dá início à lúbrica dança que deve acordar os sentidos entorpecidos do velho Herodes; seus seios ondulam e, roçados pelos colares que turbilhonam, ficam de bicos eretos sobre a pele úmida, os diamantes presos cintilam. Seus braceletes, seus cintos, seus anéis lançam faúlhas, sobre a túnica triunfal, recamada de pérolas, ornada com ramagens de prata, guarnecida de palhetas de ouro, a couraça de ourivessaria em que cada malha é uma pedra, entra em combustão. Faz serpentes de fogo se entrecruzarem, fervilha sobre a carne mate, sobre a pele rosa –chá, à semelhança de esplêndidos insetos de élitros ofuscantes, marmoreados de carmim, salpicados de amarelo-ouro, matizados de azul-aço, mosqueados de verde-pavão.
O segundo quadro, Aparição, do mesmo pintor (HUYSMANS,1987,p.88).
Ela está quase nua; no ardor da dança, os véus se desataram, os brocados escorregaram; está vestida tão só de materiais de ourives e de minerais lúcidos; um gorjal lhe aperta o talhe qual fosse um corpete e a semelhança de broche soberbo, uma jóia maravilhosa dardeja clarões na ranhura dos seus dois seios; mais abaixo as ancas, o cinto que a rodeia cobre-lhe a parte superior das coxas sobre as quais pende um gigantesco pingente de onde flui um rio de rubis e de esmeraldas; por fim, sobre o corpo desnudo, entre o gorjal e o cinto, o ventre convexo, escavado pelo umbigo cujo orifício parece um sinete gravado em ônix, de tons leitosos e cores róseas. Aos raios ardentes despendidos pela cabeça do Precursor, todas as facetas das jóias se abrasam; as pedras se animam e desenham o corpo da mulher em traços incandescentes...
A horrível cabeça flameja, sempre a sangrar, pondo coágulos de púrpura sombria na ponta da barba e dos cabelos. Salomé repele a visão aterradora que a imobiliza na ponta dos pés; seus olhos se dilatam, sua mão aperta convulsivamente a garganta.
Depois de Huysmans, outra vez Salomé é retomada, dessa vez é na obra de Oscar Wilde publicada em 1892 e encenada no ano seguinte por Sarah Bernhardt em Paris. O título da obra dramática possui o mesmo nome da personagem e foi escrita em francês por Wilde.
Tal versão de Wilde tem um aspecto bastante particular fruto do estilo do autor e em consonância com o momento histórico decadente, onde havia toda uma mistura que remonta aos binômios já citados por nós e que representam a ruptura com os padrões morais da época.
Na versão de Wilde, em que Salomé aparece apaixonada por João Batista, a narrativa é marcada por aspectos que não são sugeridos na história real. Wilde cria uma Salomé extremamente sensual valorizando o corpo, a dança o desejo. O desejo como algo que encaminha para a morte, pois tanto Salomé quanto Iocanaan são mortos.
Salomé ultrapassa os limites do real para realizar a sua vontade o seu ímpeto de beijar João Batista e o beija já morto, quando sua cabeça está numa bandeja de prata. Parte da cena é justamente o que sugere a pintura de Gustave Moreau.
No entanto, Wilde faz Herodes posteriormente matar Salomé, ou seja, ocorre uma mistura de prazer e morte, visões que serão ao longo do século XX muito estudadas.
Saindo da Europa e chegando ao Brasil, segundo José Paulo Paes, em seu artigo “Huysmans ou a nevrose do novo”, a primeira notícia aos brasileiros sobre o estilo decadente foi através de Medeiros e Albuquerque, que trouxe algumas revistas e livros de Paris e que publica as suas Canções da decadência, em 1889. Informação esta que vem a ser confirmada pelos textos de Gama Rosa e Araripe Junior, no final de 1888. Logo depois desses passos iniciais, o contato com a arte francesa desse período se tornou mais contínuo e tivemos aqui o aflorar do Movimento Decadente de maneira intensa até o início do século XX, quando ainda João do Rio publica a sua versão para Salomé.
Chamo aqui de Movimento Decadente o que a crítica insiste em chamar de Simbolismo. Isso porque a visão da crítica sobre tal movimento é algo que vem sendo revisto atualmente, já que nem em sua época e nem posteriormente o movimento foi reconhecido na historiografia da crítica brasileira, o que de fato não impediu que ele se fizesse presente em inúmeras obras.
Todavia, por não ser alvo desse trabalho falarmos da crítica ao Movimento Decadente, passamos então para o início do século quando mais uma vez a figura de Salomé é retomada pelo mesmo autor que trouxe o Decadentismo para o país.
Dessa vez, Medeiros e Albuquerque o faz em uma conferência que virou um ensaio para a Revista da Academia Brasileira de Letras, em 1927. Esse ensaio é uma leitura de inúmeras obras que tiveram a figura de Salomé como tema.
Tal artigo causou uma polêmica com um dos autores que é citado, pois o mesmo não concorda com a posição que Medeiros assume em seu texto. Diante disso, além desse primeiro texto chamado Salomé, existem outros como réplica e tréplica, que são menos interessantes que o primeiro artigo, que traz para cena as várias visões de Salomé desde São Marcos.
Medeiros, que é dono de um estilo irônico que muito parece com Machado de Assis, começa seu artigo demonstrando uma visão bastante pessimista da vida, entretanto é um pessimismo diferente, pois não torna seus seguidores infrutíferos ou inertes, pelo contrário, faz com que sua produção seja muito grande. Se buscarmos a fonte desse pessimismo provavelmente encontraremos algumas leituras do filósofo Schopenhauer que muito influenciou Decadentes e Simbolistas.
O autor ainda no início de seu artigo faz uma defesa da mulher dizendo serem os homens inferiores e antes de entrar efetivamente na defesa de Salomé ele ironicamente fala do mal que assola a sociedade daquele momento, mal esse que ele julga como uma doença qualquer e denomina-o de “Recitalite”, referindo-se à moda e a obrigatoriedade das pessoas em freqüentar os recitais que aconteciam por toda cidade, perto dos chás das cinco.
Ao introduzir Salomé, Medeiros fala: “ não se imagina o que tem sofrido essa pobre rapariga, graças a poetas e prosadores, graças até a pintores e escultores”(p.450), e inicia o texto falando sobre o fato de uma pessoa ser ou não conhecida e sobre as vantagens e desvantagens que a notoriedade traz. Cita Salomé, que, apesar de princesa, dela só se sabe um episódio de sua vida e que após o mesmo a princesa tornou-se outra vez desconhecida. Esse episódio é o narrado na Bíblia por São Marcos e São Matheus. Nessas narrativas ela aparece como uma jovem ingênua que cedeu aos apelos de sua mãe maquiavélica e vingativa. Medeiros defende Herodias dizendo que João não tinha nada que andar falando da vida dos outros como fazia.
Após essa introdução, Medeiros começa a citar os escritores e suas obras que tomaram a dançarina como personagem.
O primeiro citado é Flaubert que em seu Três contos, descreve a dança da princesa e diz que tal obra não fere a verdade histórica, ou seja, está de acordo com o que diz o evangelho. Após Flaubert, é a vez de Fagundes Varella poeta romântico, D’Annunzio, Louis Payen, Albert Samain, todos que em sua obra acompanham a narrativa bíblica e que segundo Medeiros não difamam a princesa.
Tal difamação só começa a ocorrer a partir da obra de Oscar Wilde, pois este afirma, em sua obra, que a princesa estava apaixonada por João Batista e que quando a cabeça do Santo chegou, Salomé se atirou a ela beijando-a na boca .
Partindo dessa informação, Medeiros com seu ar irônico derrama fel sobre Wilde. Fala que a cena wildeana é difamadora de Salomé, repugnante, e chama Wilde de mulher, passando, posteriormente, a mostrar várias obras que foram influenciadas pela narrativa do autor irlandês. Ou seja, desenvolvendo a idéia de que existia um profundo amor e desejo entre Salomé e Iocanaan.
No entanto, mesmo não concordando com a leitura de Wilde, Medeiros não deixa de elogiar os belos versos que surgiram após a versão de Wilde e transcreve vários poemas que mostram bem a fascinação que essa personagem bíblica causava.
Assim, o desenrolar do ensaio trabalha com a sensualidade de Salomé nas poesias que são transcritas nos idiomas em que foram escritas.
No final do ensaio, entretanto, Medeiros dá a sua opinião sobre a leitura de Wilde. Diz num tom jocoso, irônico que não acredita no fato de Salomé amar João Batista e lança mão de motivos sanitários para confirmar sua tese, pois afirma que Salomé era perfumada, limpa, e João, um sujo, fedorento, e fecha dizendo que, provavelmente a princesa teve foi nojo de João Batista e não amor. Nesse ponto, ele dá uma explicação sobre a cultura romana para confirmar a impossibilidade de paixão entre os dois personagens bíblicos.Diz ainda de duas outras representações de Salomé em forma de escultura em três igrejas francesas e que essas destoam completamente da realidade da princesa romana pois a mostram dançando a dança do ventre ou com castanholas espanholas.
Outro escritor que também escreve sobre Salomé é José Geraldo Vieira em seu livro de contos Ronda do Deslumbramento, um pequeno conto traduz mais uma representação da personagem bíblica, que foge a história convencional .
Mas não só a literatura privilegiou essa personagem, no cinema Carlos Saura no filme de 2002, a representa mais uma vez num balé excitante, que foge aos padrões de musicais cinematográficos valorizando a personagem na dança.
Antes de Saura a história bíblica é representada por Rita Hayworth em 1953, numa dança também que mexe com a sensualidade do espectador, e transgride até os padrões do cinema americano da época.
Também a opera de R. Strauss é outra forma de leitura, agora pela música que depois ganhou uma representação no teatro.
E agora, entrando no You Tube encontramos inúmeras imagens de Salomé, de sua dança, assim como encontramos centenas de pinturas e desenhos com o mesmo tema, seja usando recursos antigos ou novas formas da arte moderna e pós -moderna.
Dessa forma, o que de fato interessa nesse contexto é mostrar que Salomé, na verdade, é uma metáfora, inúmeras vezes reeditada. Ela representa a transição do velho para o novo, da tradição para o moderno. Ou seja, ela rompe com a tradição, quando manda cortar a cabeça de João e dança para o novo que surge, o moderno, o misterioso que não é ainda alvo de compreensão.
Seu giro causa a vertigem, vertigem essa, que é o grande choque do homem antigo quando se contrasta com o moderno, logo, a figura de Salomé é o emblema dessa fase da passagem do final do século XIX para o XX e que continua no século XXI a habitar o imaginário as pessoas que dela se aproximam. E Wilde foi quem melhor entendeu e reapresentou essa figura e todas a suas sugestões e simulacros.
Notas:
ALBUQUERQUE,M. Salomé. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,v.23,ano18,n.63,p.448-472.
HUYSMANS,JK. Às avessas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
WILDE,O . Salomé. In: As obras primas de Oscar Wilde. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001,p.229-276.
TEXTO PUBLICADO NOS CADERNOS DE PESQUISA INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
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