Sempre vi nos filmes,
que quando as pessoas estavam em cativeiro forçado, o
importante era estabelecer rotinas
dentro das possibilidades que tinham para que
o tempo passasse sem que se desse
a perda de seu discernimento. Lógico que não vou riscar minhas paredes com tracinhos para contar os dias, pois numa prisão domiciliar no século
XXI temos acesso a internet, aos livros e a qualquer coisa exceto o ir e vir da
rua.
No entanto, para o
bem da minha sanidade resolvi
programar a minha rotina dentro do
mínimo possível com a liberdade de
trocar tudo, inverter movimentos, mudar horas, exceto é claro a hora do panelaço na janela, que não é determinada por mim.
Acordo às 8 horas, mais ou menos, agora sempre mais, levanto
rapidamente tomo meu remédio para o estômago e deixo passar mais uma hora. Como
faço isso? Na maioria das vezes dormindo
de novo por mais uma hora, até que me canso de estar na cama.
Levanto, vou a cozinha tomar meu café com leite, normalmente
como também um pão feito por mim com algum queijo. Enquanto como, na mesinha da
cozinha sentada de frente para os cactos, sinto-me
em Paris. Talvez porque exista
ali um quadrinho daqueles que se compra em Montmartre, atrás da Sacré Coeur, que tem a imagem de uma menina bebendo leite
com uns gatinhos subindo em seu vestido vermelho, o dizer do quadrinho, uma
propaganda, é, “ lait pur de la vingeanne stérilisé”. Pois então, que ali naquele banquinho
apertadinho, sinto como se estivesse sentada num daqueles cafés parisienses
observando como um voyeur os cactos e
o tomateiro. Converso com as plantas como se fossem gente, dou ultimatum a elas, ou ficam bonitas e
elegantes ou abram espaço para outras que me contentem o olhar e o estômago.
Outras vezes no mesmo café eu ligo pelo
whatzapp a um amigo e tomamos juntos o pequeno almoço colocando em dia as
conversas do tempo, observando histórias e o povo que passa. Tempo temos todo,
não perderemos o trem, nem o metrô. Não nos preocupa o frio, nem a chuva apenas
os acontecimentos da rua, da política ou dos
filmes que assistimos na noite anterior. Sim, o que seria de nós sem os filmes que nos embalam na noite, para não sonharmos com a morte que se
faz vizinha. Ganhamos ali um bom tempo, e a manhã já vai lá pelo meio quando
nos despedimos até o dia seguinte, com outros amigos no café.
Terminado o preâmbulo
da manhã arrumo a cozinha, lavo
louças em silêncio pensando no almoço que farei e na opção da segunda tarefa do dia. Sentar e ler, escrever, olhar pela janela.
Mas tem dia na semana que tudo parece diferente, nesse dia
levanto Sebastiana. Quando acontece não tem dia fixo, determinado, lógico que
não sou maluca de deixar acontecer duas
vezes seguidas. Não, não tenho quadril para aguentar isso. Nesse dia, quando Sebastiana incorpora,
levanto tudo, passo o aspirador em toda casa, depois passo o Mopi, como um pano
de chão úmido com água e desinfetante,
limpo os banheiros, tiro a poeira, faço tudo ao som de uma boa música. Quando
acabo estou exausta e depois de um banho sento-me para ler uma coisinha.
Quando Sebastiana não desce, sigo a rotina lendo um pouco e
depois escrevendo. Pela casa tem pequenas montanhas de livros, na sala eles
ficam na cadeira ao terminar a leitura para consultar na hora da escrita.
Na biblioteca os livros ficam com outros
arquivos e o computador de mesa. Tenho
ficado pouco na biblioteca, já que na sala de estar tenho me sentido mais alegre
nesse período. Transferi pra lá a televisão, o tapetinho de yoga, o quebra cabeças de mil peças que está
a ser montado sobre a mesa e o notebook. Logo, vou a biblioteca pego o livro e
na sala me divido sentada ora no sofá, ora no tapete, ora na mesa ou deitada no
sofá. São muitos caminhos para uma ou
duas diversões, quando não se pode sair.
Quando já vai o adiantado das horas, é metade do dia,
almoço, sempre na sala. Como com o prato na mão e a televisão ligada. Vejo a
entrevista do dia do Estado de São Paulo, embora eu more no Rio, sem TV aberta, vejo pela internet.
Passados 40 dias de quarentena, esse é o único momento em
que eu vejo os jornais. Não quero mais saber quantas são os mortos, quanta
gente tem chorando e quanta irresponsabilidade sai da boca de nosso governante.
Não! me recuso a ouvir de qualquer um que a economia é mais importante que a vida, pois toda vez que
escuto isso fico sem dormir e do
alto imagino uma cidade deserta com seus prédios e completamente
vazia. A humanidade dizimada pelos loucos de plantão no poder. Mas isso não é
minha rotina, somente vez por outra esse
pensamento me acomete.
Almoço, leio e escrevo ou ouço alguma palestra sobre
filosofia, ou o herói de mil faces, faço isso montando o tal quebra cabeças.
Entre quatro e cinco, a tarde começa a findar e minha
diversão é conversar com as maritacas que passam na minha janela para o lanche.
Antes da quarentena eu tinha comprado girassol e colocado na janela. Ninguém
aparecia, mas agora fizeram daqui o pit stop antes de se recolherem da rotina
diária de voar e voar ecoando seu berro agudo pelo bairro. Fico extasiada
com elas, converso e filmo e depois distribuo para os amigos. Dessa mesma
janela vejo a vida lá fora, ela me
transporta para a cidade, plano com os
olhos como um drone, ouço os pássaros no ar e vejo lá longe outras cidades:
Caxias, Magé, o Dedo de Deus quando está bem claro. A esquerda vejo a igreja da
Penha que tem ficado mais visível sem a poluição dos carros, a direita o
aeroporto parado e ao longe o mar que separa o Rio de Niterói, vejo a
grande ponte, os navios chegando e
saindo, as vezes buzinam, outras não, chegam suaves embalados pela maré.
Olhando reto a catedral metropolitana se
impõe, assim como o relógio da Central do Brasil, que não é mais o centro, e que quase despareceu do meu
foco com um prédio novo que construíram. E tem ainda o aqueduto, os arcos da
lapa, por onde corre meu bondinho que se encontra parado.
Quando começa a
escurecer ganho meu tempo a olhar cada luz se acendendo na cidade deserta, são
como estrelas que vão surgindo em tempos diversos, vermelhas, verdes, brancas e
amarelas. O risco da rua que sobe tem
iluminação amarela e no meio das estrelas parece um rio a traçar seu caminho.
Sempre fotografo, pois cada dia é um
dia, cada dia os pensamentos pululam diferente e o sentir vai por si só se borilando.
Chega a noite, 19 horas no relógio que acendeu, paro o que
estou fazendo e pelo You tube faço uma aula de yoga. Estica daqui, força de lá,
exercício para o quadril, puxa, estica, o limite de meu corpo é ativado, chego
a suar no tapete da sala, esforço-me ao máximo e ao final shavasana que eu
mereço. Saio revigorada, mas como uma boa preguiçosa não faço todo dia, e daí?
Terá o amanhã, estou presa mesmo!!
Respondo sem piedade para mim mesma.
A noite já chegou, tomo um banho quente, bem quente, janto, depois
de 40 dias jamais jornais, eles já chegam a mim por outras vias. Ligo o Netflix
dolorosa a escolha de um filme ou uma
série curta, filmes de amor me deixam com saudade, comédias bobas eu não gosto, mas tenho achado
coisas interessantes: filmes argentinos,
espanhóis, franceses, poloneses e os tradicionais de Hollywood, todos dão
prazer a minha curiosidade, compartilho-os com amigos assim como as
experiências de cada dia.
Alice sempre me liga, meus pais e amigos também,
tem dia que falo com vários amigos de viva voz e também com imagem. E o dia
passou. Cada dia, um por vez, nem sempre
igual, pois tem dia que dou aula via internet, outro busco remédios para a vizinha, outro vou ao mercado, outros tenho
reunião de trabalho, mais sempre um pensamento é constante: vai passar!!!